sexta-feira, 26 de junho de 2009

Actualidade de Maquiavel. Viagem pelas releituras de Maquiavel

Começo por referir algumas interessantes observações de António Gramsci sobre Maquiavel.

Os anti-Maquiavel – lembro, por exemplo, a crítica radical, e algo moralista, de Frederico II, no seu «Anti-Maquiavel, ou exame do Príncipe de Maquiavel» (London/La Haye, 1741) - não o seriam porque ele tivesse defendido teses erradas, mas sim porque o que ele escreveu «faz-se, mas não se diz» (Quaderni del Carcere, Torino, 1975: 1690).
A sua irritação dever-se-ia ao facto de Maquiavel, tendo dedicado «O Príncipe» a Lourenço de Médicis, na verdade estava a expor ao povo a arte de governar, descobrindo, por assim dizer, os truques para a conquista, conservação, reprodução e alargamento do poder. Veja-se o que, a este respeito, diz Gian Franco Berardi: «o Cardeal Reginaldo Polo, um dos primeiros que escreveu contra Maquiavel, na sua Apologia (que é de 1538), refere ter ouvido alguns florentinos considerar que Maquiavel tivesse escrito “O Príncipe”, não para ajudar, mas para indicar aos tiranos a via da ruína» (Introduzione a Guicciardini, Antimachiavelli, Roma, Riuniti, 1984, 13). Mas também Diderot, no artigo da Enciclopédia sobre o «Maquiavelismo» diz algo equivalente: «Quando Maquiavel escreveu o seu Tratado do Príncipe, é como se ele tivesse dito aos seus concidadãos: leiam bem esta obra. Si vocês aceitarem alguma vez um senhor, ele será como eu vo-lo pinto – eis a besta feroz à qual vos abandonareis. Assim, foi falha dos seus contemporâneos se eles não perceberam o seu objectivo: eles tomaram uma sátira por um elogio». Rousseau fez a mesma leitura, no Contrato Social: «Assim, fingindo dar lições ao reis, ele deu uma grande lição aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos» (Liv. III, cap. VI).
Estas posições sobre o verdadeiro objectivo de Maquiavel nem sequer seriam incompatíveis com a dimensão teórica que adquiria esta reflexão sobre a mecânica implacável do poder, a sua lógica interna, o seu funcionamento eficaz. E, na verdade, bem mais importante do que saber se ele queria dar uma potente arma cognitiva ao povo, o que Maquiavel fez representa o autêntico início da análise política racional, separando-a da ética e da religião. Como diz Gramsci: «em todo o pequeno volume, Maquiavel trata de [explicar] como deve ser o Príncipe, para conduzir um povo à fundação do novo Estado, e a análise é conduzida com rigor lógico, com distanciação científica» (Q. 1556). E ainda: «o Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações morais» (Q. 1561).

Assim se emancipa a política quer da imputação transcendente do poder («divindade») quer da imputação ética da acção política (imperativo categórico).

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Na verdade, do que se trata, em Maquiavel, é da arte – ou da ciência - de governar de acordo com autênticas normas técnicas, fundadas na lógica e no conhecimento empírico e histórico dos homens. É por isso que, ao contrário de Guicciardini, Maquiavel se move intelectualmente ao nível europeu, do homem europeu.
O que disse, então, Maquiavel?
Quais são, então, as principais normas técnicas da arte de «governar e manter», contidas no Príncipe? Faço um curto elenco das que me parecem mais importantes, a partir do Príncipe:

O grande presuposto do Príncipe: «similmente, a conoscere bene la natura de’ populi, bisogna essere principe, e a conoscere bene quella de’ principi, bisogna essere populare» (Opere, Milano, Mursia, 1966: 59).

Este pressuposto justifica, de algum modo, a ideia de que só o povo pode julgar verdadeiramente a acção do Príncipe e, por isso, ele legitima-o mais do que se poderia supor, sobretudo se se entender que Maquiavel queria, com esta afirmação, justificar a redacção deste livro. Mas se é verdade que ele acaba por justificar a legitimidade de um juízo popular sobre a acção do Príncipe, também é verdade que este pressuposto também justifica a legitimidade do governo do Príncipe. Se a natureza dos Príncipes só pode ser bem conhecida pelos respectivos povos, também a natureza dos povos só pode ser bem conhecida pelos respectivos Príncipes, estando, por isso, só eles habilitados e, portanto, legitimados a governá-los. Príncipe e Povo são, pois, as constantes do sistema e a política desenvolve-se como relação técnica entre inúmeras variáveis.

E, ainda, como princípios:

* «li uomini sempre ti riusciranno tristi (maus), se da una necessità non sono fatti buoni» (O., 115);

** E «quelle difese solamente sono buone, sono certe, sono durabili, che dependano da te proprio e dalla virtù tua» (O., 117);

*** «perché il nostro libero arbitrio non sia spento, iudico potere essere vero che la fortuna sia arbitra della metà delle azioni nostre, ma che etiam lei ne lasci governare l’altra metà, o presso, a noi» (O., 117);

Vejamos, então, as normas técnicas.

1. «non preterire l’ordine de’ sua antenati e, di poi, temporeggiare com gli accidenti» (O., 61);

2. «chi è cagione che uno diventi potente, ruina; perché quella potenzia è causata da colui o con industria o con forza, e l’una e l’altra di queste due è sospeta a chi è diventato potente» (O., 67);

3. «Perché le iniurie si debbano fare tutte insieme, acció che, assaporandosi meno, offendino meno; e benefizii si debbano fare a poco a poco, acció si assaporino meglio» (O., 80).

4. «Concluderó solo che a uno principe è necesario avere il populo amico; altrimenti non ha, nelle avversità, remedio» . (...) «E non sia alcuno che repugni a questa mia opinione con quello proverbio trito (comum), che chi fonda in sul populo fonda in sul fango» (O., 82) ;


5. «E principali fondamenti che abbino tutti li stati, così nuovi come vecchi o misti, sono le buone leggi e le buone arme». (O., 86) ;

6. «Questi simili modi debbe osservare uno principe savio [tomar a peito a arte da guerra, a organização e a disciplina militares e estudar «le azioni delli uomini eccellenti»); e mai ne’ tempi pacifici stare ozioso; ma con industria farne capitale, per potersene valere nelle avversità, acció che, quando si muta la fortuna, lo truovi parato a resisterle» (O., 93);

7. «Onde è necessário a uno principe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non buono, e usarlo e non l’usare secondo la necessità» (O., 94); o príncipe deve « non partirsi dal bene, potendo, ma sapere entrare nel male, necessitato» (O., 100);

8. «E intra tutte le cose di che uno principe si debbe guardare, è lo essere contennendo e odioso; e la liberalità all’una e l’altra cosa ti conduce. Pertanto è più sapienza tenersi el nome del misero, che parturisce una infamia sanza odio, che per volere el nome del liberale, essere necessitato incorrere nel nome del rapace, che parturisce una infamia con odio» (O., 96).

9. «Debbe nondimanco el principe farsi temere in modo che, se non acquista l’amore, che fuga l’odio; perché può molto bene stare insieme essere temuto e non odiato» (O., 97);

10. «a uno principe è necessario sapere bene usare la bestia e l’uomo» (…). «Sendo dunque uno principe necessitato sapere bene usare la bestia , debbe di quelle pigliare la golpe e il lione; perché il lione non si defende da’ lacci, la golpe non si defende da’ lupi. Bisogna dunque essere golpe a conoscere e lacci, e lione a sbigottire e lupi. Coloro che stanno semplicemente in sul lione, non se ne intendano» (O., 99) ;

11. «Ma è necessario (…) essere gran simulatore e dissimulatore: e sono tanto semplici gli uomini, e tanto obediscano alle necessità presenti, che colui che inganna, troverrá sempre chi si lascerá ingannare» (O., 99);

12. «A uno principe adunque non è necessario avere in fatto tutte le soprascritte qualità, ma è bene necessario parere di averle» (O., 100); porqie «ognuno vede quello che tu pari, pochi sentono quello che tu se’; e quelli pochi non ardiscano opporsi alla opinione di molti che abbino la maestà dello stato che gli defenda» (O., 100);

13. «li principi debbano le cose di carico fare sumministrare ad altri, quelle di grazia a loro medesimi. Di nuovo concludo che uno principe debbe stimare e grandi, ma non si fare odiare dal populo» (O., 103);

14. «Nessuna cosa fa tanto stimare uno principe, quanto fanno le grandi imprese e dare di sé rari esempli» (…). «Dare di sé in ogni sua azione fama di uomo grande e d’ingegno eccelente».

15. «È ancora stimato uno principe, quando elli è vero amico e vero inimico» (O., 111);

16. O príncipe deve «ne’ tempi convenienti dell’anno, tenere occupati e populi com le feste e spettaculi», estando também presente algumas vezes, mas «tenendo sempre terma nondimanco la maestà della dignità sua» (O., 113);

17. «La prima coniettura che si fa del cervello di uno signore, è vedere li uomini che lui há d’intorno» (O., 113); por isso, o príncipe deve eleger « nel suo stato uomini savii, e solo a quelli debbe dare libero arbitrio a parlarli la verità, e di quelle cose sole che lui domanda, e non d’altro» (O., 114);

18. «che sia meglio essere impetuoso che respettivo; perché la fortuna è donna, ed è necessario, volendola tenere sotto, batterla e urtarla» (O., 119).

Resumindo ainda mais, são as seguintes as normas que o Príncipe deverá respeitar: ter o povo como amigo; respeitar a tradição; não se tornar causa da potência de outrem; ter boas leis e boas armas; na paz, preparar-se para a guerra; ser mau quando necessário, sem se afastar do bem; fazer o mal de uma só vez e o bem aos poucos; fazer-se temido, mas evitando o ódio; ser impetuoso, mais do que prudente; dar aos outros a administração das coisas más, reservando para si a das boas; saber ser verdadeiro amigo e verdadeiro inimigo; simular e dissimular; ter qualidades, mas sobretudo parecer tê-las, porque se todos vêem o que pareces, poucos vêem o que és; ser leão e ser raposa; promover grandes empreendimentos e dar exemplos raros; escolher colaboradores sensatos; ocupar o povo com festas e espectáculos.

Estas normas técnicas são acompanhadas por três princípios transversais a todas as normas referidas: a) os homens são maus, se a necessidade não os fizer bons; b) só as defesas que dependem de ti e da tua virtude são boas, certas e duradouras; c) se a sorte governa metade das nossas acções, que sejamos nós a governar a outra metade.

Portanto, lugar para a sorte, mas também lugar para a vontade humana, neste caso do Príncipe, no governo do seu destino; neste governo, são as próprias capacidades do Príncipe que o salvaguardarão do perigo, até porque os homens são naturalmente maus. Daqui a necessidade destas normas para um governo eficaz e resistente ás insídias.

Como se pode ver estas são normas técnicas, independentes da moral, visando somente o sucesso no exercício e na consolidação do poder. Trata do bom governo, mas não necessariamente do governo bom. Não trata dos fundamentos do poder, da questão da legitimidade, mas trata da sua gestão eficaz. Não trata do modelo virtuoso de Estado, mas sim do Estado como ele é, na sua realidade efectiva, nos seus métodos de funcionamento. Trata o Estado de um ponto de vista secular e laico. É por isso que se considera que Maquiavel inaugurou a ciência política moderna, separando-a da ética e da religião e tratando o poder como um sistema com variáveis que devem relacionar-se com coerência em função da conservação e reprodução segura do próprio sistema.
Benedetto Croce, em 1924-1925, reconheceu claramente em Maquiavel estas dimensões: «é sabido que Maquiavel descobre a necessidade e a autonomia da política, da política que está para além, ou antes, para aquém, do bem e do mal moral, que tem as suas leis às quais é vão rebelar-se, que não se pode exorcizar e expulsar do mundo com a água benta. É este o conceito que circula em toda a sua obra» (…) representando «a verdadeira fundação de uma filosofia da política». Mas, continua Croce, o que foi esquecido em Maquiavel foi a sua amargura pela natureza dos homens, ingratos, volúveis, cobiçosos. Natureza que obriga a que política se dote dessas técnicas que permitem dominá-los e vencê-los na sua maldade. A valorização que Croce fará de Maquiavel e de Gianbattista Vico reside precisamente na complementaridade de ambos, lá onde a política-política de Maquiavel conhece em Vico um reconhecimento tal ( como «drama da humanidade») que lhe permite que ela se conjugue com a «vida ética» sem perder a autonomia. De Sanctis chegara mesmo a ver na sua doutrina uma revolução copernicana na concepção do homem que «tem na terra a sua seriedade, o seu objectivo e os seus meios».

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O verdadeiro alcance do legado de Maquiavel (1469-1527), não foi compreendido pelos seus críticos, designadamente por Frederico II, que, como já disse, chegou a escrever um Anti-Maquiavel. «Em política, dizei-me o que quiserdes, discuti, construí sistemas, apresentai exemplos, usai todas as subtilezas: apesar disso, no fim, regressareis ao conceito de justiça», dizia Frederico II (1712-1786) na sua crítica radical ao Príncipe (1513), em obra significativamente intitulada Antimachiavel ou examen du Prince de Machiavel (London/La Haye, 1741) e elaborada após reflexões conjuntas com o amigo Voltaire (Frederico II, Antimachiavelli, Pordenone, Edizioni Studio Tesi, 1987).
É uma obra com os mesmos vinte e seis capítulos (e iguais títulos) do Príncipe e pretende restabelecer, contra Maquiavel, o primado da justiça e da razão em face da obstinada corrupção da «política com a intenção de destruir os princípios de uma sã moral» (1987: 3). «O Príncipe de Maquiavel», diz Frederico II, «é semelhante aos deuses de Homero, fortes e potentes, mas iníquos. O autor ignora até o ABC da justiça e conhece só o interesse e a violência» (1987: 63). Se no Telémaco (1699), de Fénelon (1651-1715), «a nossa natureza parece aproximar-se da dos anjos», insiste Frederico II, no Príncipe a «nossa impressão é que ela, pelo contrário, se aproxima da dos demónios do inferno» (1987: 31). Pelo que o desejo forte do futuro rei da Prússia se traduzia em louvar «quem puder destruir completamente o maquiavelismo no mundo» e quem conseguir «libertar o público do preconceito que tem em relação à política, que deve ser um modo sapiente de governar e não um breviário de espertezas» (1987: 113-114).
Frederico II faz do Príncipe uma leitura crítica cerrada. Não se limita a refutar conceptualmente as teses de Maquiavel, chega mesmo a contestar os próprios exemplos históricos em que ele apoia as suas teses. Esta crítica poderia servir de base reflexiva e textual para a sedimentação do que hoje se entende universalmente por maquiavelismo político.

Com efeito, se folhearmos alguns dicionários e enciclopédias, poderemos encontrar, na definição do conceito ou palavra maquiavelismo, por exemplo, o seguinte:

1. «conduta artificiosa e pérfida» (Petit Larousse);
2. «termo usado na literatura política para indicar a atitude de quem sacrifica todo o escrúpulo moral para conseguir o sucesso» (Enciclopedia De Agostini);
3. «doutrina segundo a qual ao Príncipe ou ao Estado é lícito recorrer a todos os meios (incluindo o assassínio) para alcançar os seus fins» (Dicionário de Português, da Porto Editora);
4. «o maquiavelismo é o sacrifício de todos os princípios a um só, o interesse; a violação de todas as leis da moral imoladas ao sucesso» (Dictionnaire général de la politique, Paris, 1864; aqui se refere também as críticas de Frederico II e de Voltaire);
5. finalmente, «interpretação utilitarista, decadente e arbitrária da doutrina de Maquiavel» (Dizionario Garzanti).

E assim é: interpretação arbitrária da doutrina de Maquiavel.

O verdadeiro sentido da obra de Maquiavel não corresponde ao que se sedimentou no senso comum, nem à interpretação que dela faz Frederico II. Trata-se, bem pelo contrário, de uma obra que praticamente inicia a ciência política moderna:

1) desvinculando o moderno Estado laico da religião e do eticismo;
2) considerando o Estado em si, como uma entidade autónoma com lógica própria e sem vínculos naturais e ideológicos;
3) conferindo, portanto, à política o significado de técnica do e para o poder (Cerroni, U., Il pensiero poítico - dalle origini ai nostri giorni, Rona Riuniti, 1966: 322-23).

E se é certo que Maquiavel não pôde formular em sentido moderno a questão da origem ou da legitimidade do poder, portanto, não pôde formular a teoria da soberania popular, ele, todavia, afirmou decisivamente a autonomia do político, ao mesmo tempo que revelou a verdadeira natureza centáurica de todo o Estado: a presença, neste, da força e da razão (embora fosse uma razão puramente técnico-instrumental), da «bestia e l'uomo», da raposa e do leão («la golpe e il lione»), precisamente como aquele «Chirone centauro» que serviu de preceptor a Aquiles (Machiavelli, Opere, 1966: 99). «Coloro che stanno semplicemente in sul lione non se ne intendono», afirmava, com efeito, Maquiavel.
Ele é, portanto, mais do que aquele demónio da moral e da política para que a tradição o remeteu. Ele é, na verdade, o pai da política moderna. Não podendo formular a questão da soberania popular, tratou o poder de um ponto de vista sistémico, técnico-instrumental. Contra os vínculos naturalistas e religiosos, mas sem o vínculo da legitimidade. Precisamente como os sistémicos: o poder como máquina que se auto-reproduz funcionalmente. E aqui (posta a excepcional descoberta científica) está também o limite de Maquiavel e de todas as teorias que postulam a exclusividade da racionalidade técnico-instrumental em vista do sucesso, ou seja, da auto-afirmação do poder.
O poder, hoje, com a crise das teorias da legitimidade e das próprias concepções projectuais de sociedade, assumiu em muito as feições de um moderno maquiavelismo ou neo-maquiavelismo que se nutre do pragmatismo funcionalista característico das democracias pós-clássicas e das enormes concentrações de poderes económicos e mediáticos que lhe conferem uma capacidade quase ilimitada de se conservar, reproduzir e ampliar para além do próprio princípio do bem e do mal.
A moderna desideologização do poder político remeteu de novo para o Estado o exclusivismo ideal dessa asséptica lógica técnico-instrumental de conservação e de reprodução do poder, através da nova figura do moderno príncipe, que é o partido político, que, afinal, se torna tanto mais maquiavélico quanto menos assumir aquilo que se afirmou institucionalmente depois de Maquiavel, isto é, o princípio da soberania popular e os conteúdos éticos do Estado, e cada vez mais sofisticar as técnicas de administração contidas na velha máxima do «panem et circenses».
Se assim for, os pressupostos do maquiavelismo ainda estão todos presentes na política de hoje sob formas novas. E uma dessas é, precisamente, a chamada partidocracia: quando toda a estrutura institucional do Estado é usada como mero meio de conservação e de reprodução do poder de um partido ou partidos em detrimento do bem comum.
Em conclusão, a moderna crise de valores, a crise das utopias ou dos valores projectuais de sociedade e a crise da legitimidade e da representação acabaram por repor em marcha uma perigosa tendência para transformar o Estado em pura máquina laica de conservação do poder. Só que sem a virtude «maquiavélica» de afirmação de uma novidade que já o não é: a autonomia de uma política que deveria, antes, ser refundada, não em sentido neo-maquiavélico, mas sim no sentido de repor no Estado aquela justiça e razão finalista de que (teoricamente) já Frederico II falava no seu Antimaquiavel e que os contratualistas tão bem delinearam.
A escola maquiaveliana sempre teve sucesso no pensamento e na práxis política. Mesmo em Portugal, onde, no séc. XIX, o reaccionário (e um dos pais nacionais do integralismo lusitano) Gama e Castro escrevia um Novo príncipe, mais lione do que golpe, para guia eficaz do poder absoluto; ou, mais recentemente, onde Adriano Moreira via nas Forças Armadas a figura do Novíssimo Príncipe, com propensão, portanto, a valorizar também mais a parte do leão do que a da raposa (Moreira, A., O novíssimo príncipe. Análise da revolução, Lisboa, Intervenção, 1977: 87, 97).

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A leitura que António Gramsci (1891-1937) fez de O Príncipe de Maquiavel sofre muitas mediações. Nele o Príncipe, o Novo Príncipe, é o partido político. É ele, na óptica gramsciana, que prefigura o Estado e, por isso, que deve dispor de uma estratégia política capaz de conquistar, manter, consolidar e alargar o poder. Sendo o seu pensamento de inspiração marxista, ele, todavia, não concebe o Estado nem como Maquiavel nem como os marxistas. Ou seja, não o concebe de forma instrumental. É certo que a dimensão centáurica de Estado, assumida pelo Florentino, também é assumida por Gramsci na sua nova forma da combinação da força (il lione) e do consenso (la golpe). Mas também é verdade que Gramsci vai mais além, vendo o Estado como propulsor de uma hegemonia ético-política e cultural, bem longe daquela sua dimensão puramente técnica ou instrumental. E, de facto, o problema da hegemonia é, afinal, a grande questão que continua a pôr-se à política democrática.

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