Para onde vai o «Bloco de esquerda»?
É claro: o Bloco de Esquerda ambiciona substituir-se ao PS como força de governo alternativa à direita. Francisco Louçã não se cansa de o repetir. Não se alia a ele, quer substituir-se-lhe. É natural e legítimo. É esta a vocação dos partidos políticos. Mas não sei se é a dos movimentos. Esta opção tem, todavia, um problema, que passo a enunciar. O PS corresponde a um espaço de valores, de ideais e de programas que vem sendo definido como socialismo democrático ou social-democracia, onde a liberdade (individual) ocupa uma posição decisiva ao lado da igualdade, entendida como igualdade de condições e de oportunidades, onde ao Estado cabe garantir os bens públicos essenciais. Este espaço político tem uma longa história e nele tem vindo a reconhecer-se uma faixa muito consistente dos eleitores de meio mundo. É por isso que os partidos socialistas se têm constituído como as verdadeiras forças alternativas quer à direita quer às esquerdas igualitaristas e radicais. Este espaço está lá, não é uma construção mental ou um resultado artificial do consumismo eleitoral. Está lá e, sendo a identificação concreta dos cidadãos com este espaço variável, não o é suficientemente de modo a mudar a distribuição essencial da representação política. As variações mais significativas têm-se verificado sobretudo em conjunturas muito especiais, com lideranças fracas e titubeantes, em períodos de crise ou, então, motivadas por fracturas, muitas vezes graves, como aconteceu em França ou em Itália. Mas, no essencial, o espaço sempre continuou a ser ocupado por estes partidos.
«Partidos-âncora» e «Partidos-charneira»
Poderia fazer um raciocínio equivalente para a direita moderada, democracias cristãs, republicanos ou conservadores. E elencar casos em contexto histórico: democratas e republicanos, trabalhistas e conservadores, democracias cristãs e sociais-democratas, socialistas e populares. A história dos partidos nos últimos 60 anos dá-nos bem conta desta bipolarização essencial. Mas dá-nos também conta da emergência de «partidos-charneira», que nunca conseguiram ocupar o lugar dos «partidos-âncora», acabando por aliar-se com eles. Os liberais e, depois, os verdes, na Alemanha. Os socialistas em Itália, aliados da direita, desempenhando o PCI o papel de «partido-âncora» da esquerda moderada. Os liberais em Inglaterra, embora prejudicados pelo sistema eleitoral inglês. Em França, a bipolarização verificou-se também entre o PS e os gaullistas ou os liberais da UDF, de Giscard’Estaing. Em boa verdade, só em 1981, com Mitterrand, esta se viria a concretizar. Em Portugal, o CDS/PP tem assumido algumas vezes a função de «partido-charneira» (com o PSD e, uma vez, com o PS) e Paulo Portas não esconde esta sua vocação, assumida também como aspiração. Mas o mesmo não acontece à esquerda: nem com o PCP, pela sua rigidez político-ideológica, nem com o «Bloco», embora até possa parecer plausível, pelas suas características, uma sua aspiração a «partido-charneira», à esquerda.
«Middle-class»
Mas a verdade é que estes grandes espaços político-ideológicos, de centro-esquerda e de centro-direita, de que falo, estão lá, não são invenções de iluminados, correspondem a sentimentos fundamentais perante a vida de grandes faixas das populações, em ambientes politicamente estáveis. Correspondem a uma relação complexa com a vida que envolve muitas variáveis, sobretudo aquelas variáveis que resultam das experiências microcomunitárias (da família à aldeia, ao bairro, à freguesia). Uma relação avessa aos experimentalismos sociais, cheia de mediações e de rituais quotidianos de convivência, amiga da estabilidade e das microcomunidades naturais, pouco propensa a radicalismos e com uma dose razoável, e saudável, de individualismo proprietário. Estes espaços não se reconhecem no experimentalismo social nem se identificam com os voluntarismos construtivistas, sejam eles de esquerda ou de direita. Hoje, muitos designam estes espaços como lugar onde respira politicamente a
«middle-class», a nova classe média.
Que modelo de desenvolvimento?
Ora, perante isto, como pode o Bloco aspirar a substituir-se a um partido que vem mantendo, ao longo da sua história recente, uma representação política tão consistente, como o PS, com cerca de 35% do eleitorado, em média, nos últimos 35 anos, ou seja ao longo de todo o arco desta III República? Como consegui-lo, mantendo esta monumental indefinição identitária do Bloco de Esquerda, que começa logo na sua caracterização como partido ou como movimento e que termina por não conseguir definir uma identidade diferente daquela que sempre foi, afinal, própria dos partidos socialistas, nem capitalistas nem burocráticos? Louçã diz-se republicano, laico e socialista. Precisamente. Não se diz revolucionário. Mas isto quer dizer que ele pretende promover o verdadeiro Partido Socialista Reconstruído? Como consegui-lo, mantendo aquela dualidade corpórea das suas tendências internas, mais radicais, que, mantendo-se como partidos/movimentos autónomos (falo sobretudo do PSR e da UDP), se exprimem também como «Bloco», virtual frente destacada para a democracia burguesa? Como consegui-lo, mantendo um projecto político fortemente fragmentário, com propostas isoladas que não conseguem referenciar um concreto modelo de desenvolvimento, a não ser por via negativa? Taxar os ricos, acabar com os offshores, democratizar a economia (eufemismo para designar a superação da propriedade privada dos meios de produção), nacionalizar bancos, seguradoras e empresas de energia, castigar o capital financeiro, impedir administrativamente os proprietários de gerir livre e eficazmente as suas empresas (sem as transformarem em instituições de solidariedade social), acabar com os benefícios fiscais à classe média, na poupança, na saúde e na educação, etc., etc., são propostas, mesmo assim, insuficientes para determinar um modelo de desenvolvimento, nem capitalista nem burocrático. Como insuficiente é identificar-se como proprietário de causas que, afinal, são comuns ou transversais aos outros partidos (emancipação da mulher, luta contra as discriminações, defesa do eco-sistema, igualdade de género, luta contra o racismo…), pela simples razão de serem causas civilizacionais. Finalmente, como consegui-lo, persistindo na obsessão de federar todos os descontentamentos, gritando sempre pelos direitos e nunca pelos deveres ou colocando os deveres sempre dum lado e os direitos sempre do outro?
Tabloidismo político
Mantendo tudo isto, não consigo compreender como é que um partido (ou movimento) destes pode ocupar uma faixa eleitoral maioritária na nossa democracia. Tanto menos se compreende que Louçã, nas inúmeras entrevistas em que se vai desdobrando, diga cada vez menos, ou seja, praticamente nada, sabendo-se, afinal, cada vez menos de um partido que aspira a crescer cada vez mais. A não ser que essa seja uma mera táctica eleitoral, mero tabloidismo político em busca de audiência (eleitoral). Louçã fala de agendas escondidas. Mas ele vai mais longe: esconde a sua identidade política atrás de um enorme reposteiro de medidas avulsas de inspiração anticapitalista, proto-socialista ou vagamente comunista. Mais: Louçã diz não querer crescer à custa do eleitorado comunista, mas sim do eleitorado socialista, imaginando que esse eleitorado possa um dia vir a reconhecer-se num movimento/partido sem identidade ou com identidade escondida, lá onde se cimentam todas as tendências do imenso caldeirão ideológico submerso, federando descontentamentos e exibindo apenas uma «ideologia do negativo».
Ora eu não creio que a história dê razão a Louçã e aos pequenos taumaturgos que pululam no «Bloco». Também não creio que, com esta identidade submersa, possa representar uma classe média que, apesar da sua maior instabilidade ideológica, da sua mobilidade profissional e patrimonial, dos seus interesses corporativos conjunturais e do seu nomadismo cultural, se rege por padrões de estabilidade, de segurança, de liberdade e de complexidade existencial algo incompatíveis com o movimentismo político-ideológico e fracturante do «Bloco».
Tudo isto, independentemente das fracturas internas que sobreviriam se o «Bloco» renunciasse ao seu ADN, como partido do descontentamento, sendo chamado às responsabilidades governativas, e das ondas de choque que uma sua acção política reformista (nem iconoclasta nem revolucionária) desencadearia nos grandes grupos sociais com fortes interesses corporativos instalados.
Noutro lugar (joaodealmeidasantos.blogspot.com - «Para onde vai o Bloco de esquerda?») designei por «angústia feliz» as dores por que um bloco em crescimento já está a passar, a começar pela crescente afasia identitária do líder. Imaginemos o que não seria se ele crescesse eleitoralmente muito mais.
Mesmo assim, a pergunta que cada vez mais será feita é esta: será capaz o «Bloco» de descer ao compromisso, viabilizando uma solução governativa de esquerda sem correr o risco de implodir? Esta, a pergunta. Este, o desafio. Esta, a angústia.
Texto publicado também, em simultâneo, em http://simplex.blogs.sapo.pt/
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
Para onde vai o «Bloco de Esquerda»?
Aparentemente, nada de surpreendente tem a entrevista de Francisco Louçã à Revista «Sábado» (27.08.2009). E, de facto, a moderação do discurso até faz sentido se atendermos às responsabilidades do líder de um partido com a expressão eleitoral que hoje o «Bloco de Esquerda» pode exibir. Mas a verdade é que não deixa de ser surpreendente esta moderação. Ou é a dimensão da representação e das expectativas que faz milagres? A entrevista já foi objecto de crítica por dois «tremendistas» de direita, sempre presentes nos interfaces da comunicação, num jornal e numa revista. Creio ser também oportuno que os moderados de esquerda se pronunciem, na esperança de virem a conhecer, no «Bloco», aquilo que tem sido difícil de determinar: a sua identidade.
Partido ou movimento?
E começo por notar, no discurso de Louçã, uma primeira indefinição: o «Bloco» é um partido ou um movimento? Ele não no-lo diz, apesar de todos sabermos que não são a mesma coisa. Os partidos têm uma estrutura organizativa estável, uma ideologia, uma identidade, aspiram ao poder, reconhecem-se num líder, legitimado por eleições internas. Os movimentos são federações de causas, não são organicamente estáveis, não têm uma identidade ideológica clara, precisamente porque se organizam em torno de causas concretas. E o «Bloco», na verdade, ainda continua a querer parecer-se – até no nome e nos próprios Estatutos - mais com um movimento do que com o partido que cada vez mais é. Quem o diz é Daniel Oliveira, que o conhece bem: «Com mais peso eleitoral, o Bloco parece ser hoje um partido menos plural, mais ideológico, mais concentrado na figura do seu líder, com maior peso político do seu aparelho e mais parecido com o PCP do que era há dez anos» («Expresso», 29.08.2009). Então, por que razão Louçã não o assume, em vez de dizer que o BE representa as duas coisas, a legal e a substancial? Parece que na origem foi mesmo assim: federaram-se em torno de causas concretas, sem discutir identidades. Tratou-se de um método. Que se revelou eficaz. Por isso, se calhar, Louçã não pode ser mais claro, ir mais longe do que o Art. 1º. dos Estatutos do «Bloco», mantendo essa margem de ambiguidade e de mistério sedutor que atrai jovens e cultores da utopia e do movimento. Até porque, eventualmente, essa ambiguidade e esse mistério, sendo certamente condições de existência, são, ao mesmo tempo, condições de sobrevivência ou até mesmo condições do seu próprio sucesso. Diria até que as remotas origens das tendências que integram o «Bloco» (comunistas, trotskistas, maoístas…) permanecem como referências não expressas, mas ideologicamente motivadoras de uma formação política que cada vez mais está a tornar-se um partido com características tradicionais, onde a lógica e o peso da organização chupam a alma do movimento. Essas remotas origens, de sabor revolucionário, utopistas e vanguardistas, estão bem presentes – e creio que não sob forma recalcada – neste partido/movimento que lhes permitiu – sem problemas de consciência (política), mas certamente com muitas reservas mentais – aceder, com sucesso, ao coração da democracia representativa. Agora, a questão reside em saber se o acesso foi mesmo à democracia representativa ou se foi um acesso puramente instrumental à chamada democracia burguesa. Neste último caso, persistirão as reservas mentais da consciência política. No primeiro caso, o «Bloco» experimentará uma profunda angústia feliz. Mas uma angústia feliz (um crescimento eleitoral que o pode tornar feliz, mas que exige dolorosas clarificações e ainda mais dolorosos compromissos) que não pode durar muito tempo, como muito bem diz Daniel Oliveira, nas páginas do «Expresso».
A questão da identidade
Sobre a identidade, depois, Louçã também é indefinido: trata-se de uma esquerda socialista, que rejeita a desigualdade social e a exploração, mas que rejeita também o modelo do socialismo burocrático e monopartidário. Depois, fala de confrontação e de alternativa ao capitalismo existente, mas não avança mais. Mas, se é esta a identidade do «Bloco», suspeito que não se distinga em nada daquele que foi o tradicional posicionamento identitário dos partidos socialistas e sociais-democratas. O que, a ser assim, me levaria a pensá-la como experiência passageira, equivalente às que vimos acontecer, por exemplo, no longo historial da esquerda francesa. Ou seja, uma evolução no sentido moderado pô-lo-ia no arco do socialismo democrático, sujeito às reacções intempestivas das suas tendências mais radicais, enquanto uma inflexão no sentido mais radical empurrá-lo-ia para uma lógica de «aggiornamento» do comunismo, em competição aberta com o PCP. Eu creio que o «Bloco» está a tentar esboçar uma linha de renovação política da esquerda, com algumas rupturas imprescindíveis ao seu vanguardismo civilizacional e para manter a tensão ideal das suas tendências, mas também para colher bons frutos eleitorais no desencanto generalizado dos cidadãos, e com uma calculada moderação que o torne politicamente confiável, não assustador e capaz de «desbloquear» - como, ao que parece, foi a sua motivação primeira – uma esquerda que dizem permanecer rígida nas suas posições políticas e ideológicas. E eu creio que, na verdade, aos partidos de esquerda está a faltar uma cultura política que repense radicalmente os processos de legitimação interna (introduzindo, por exemplo, primárias abertas) e que promova processos de reconhecimento, de motivação e de integração política não instrumentais de quantos se destacam na sociedade civil pelos seus méritos próprios, ao mesmo tempo que imponha, com firmeza, a defesa do interesse geral, com flexibilidade política tanto quanto possível e com rupturas sempre que necessário. Tarefa tanto mais necessária quanto vivemos numa sociedade com propensão corporativa, hoje muito animada pela sua forte capacidade de expressão no espaço público, e tão difícil de executar, como se verificou ao longo dos anos de governo de José Sócrates, que desta orientação fez linha firme de rumo essencial. Mas a verdade é que desta mesma cultura não encontramos grandes traços no «Bloco», tão preocupado que está em federar os descontentamentos. Antes pelo contrário, até parece que começa a inflectir para posições mais próprias dos partidos políticos tradicionais, fruto da afirmação crescente de uma implacável lógica organizacional.
A esquerda e as elites
Mas no discurso de Louçã surpreendeu-me também o reconhecimento da teoria da circulação das elites alternativas - tão presente na tradição política da direita -, não só no plano do exercício do poder político electivo como também no plano do exercício do serviço público e administrativo, distanciando-se, nisto, do discurso do PCP, mais propenso a um discurso populista e anti-elites. Pelo contrário, já não me surpreendeu tanto o discurso catastrofista em relação a Portugal («há um fracasso do regime político em Portugal, porque há um fracasso do regime económico» ou, ainda mais radicalmente, na entrevista ao «Expresso», de 29.08: «está a haver um colapso do regime político, dos partidos tradicionais e da estrutura de poder»), habituado que estou a ver aquelas peças de oratória parlamentar sobre os perdidos deste mundo e a missão redentora das elites bloquistas. Mas, depois, sobre o modelo económico, volta a ser moderado e só fala de «grandes correcções», não já de modelo alternativo. A ambiguidade continua.
Estilos
Depois a moda. Sim, concordo, de certo modo, com Louçã, dizendo que a moda dura há demasiado tempo para se reduzir a uma questão de estilo. Mas a verdade é que as características deste «Bloco» estão muito centradas no estilo, e não só por dificuldade de produzir um discurso de substância que não seja exclusivamente crítico, mas propositivo e politicamente viável. A oratória da redenção é estilo. De certo modo, o estilo também é a mensagem. Afirmar-se como movimento, mesmo quando já mais se parece com um partido, não é certamente só uma questão de estilo, mas também é, se o meio for a mensagem, como dizia McLuhan. Por que razão os bloquistas não usam, por norma, gravata, no Parlamento? A gravata está associada à democracia burguesa, ao formalismo burguês? Ou é uma questão de estilo? Por outro lado, o catastrofismo discursivo («o colapso do regime político») se não é uma moda em sentido estrito, pelo menos rende audiências e até pode transformar-se num estilo (a famosa cassete do PCP) ou mesmo numa mundividência muito próxima daquela que via este mundo como um imenso vale de lágrimas. Com uma diferença: a de que a redenção estaria do lado de cá. É claro que, em tempo de crise das mundividências e das ideologias, o estilo domina o espaço público, sobretudo lá onde os movimentos sociais são algo fragmentários e resistentes à afirmação de uma identidade político-ideal própria. O estilo, de resto, é figura central em tempos de pós-modernidade, onde a profundidade temporal não tem direito de cidadania.
«Economia de ganância»
O que me surpreende é a pobreza conceptual do discurso de um líder com as reconhecidas competências de Francisco Louçã. Ma non troppo. É que, provavelmente, o problema reside não tanto no seu discurso, mas na natureza do referente, qual gigantesco caldeirão de tendências difíceis de unificar num discurso identitário que não seja através da categoria do negativo ou do resgate moral de uma sociedade estruturalmente boa, mas corrompida pela «economia de ganância», «alla faccia» de Fareed Zakaria e do seu «Capitalist Manifesto: Greed is Good». Só que esta ambiguidade não pode permanecer por muito tempo. Até porque o terreno em que se move o «Bloco» é um terreno muito mais móvel do que parece, à excepção daquela pequena franja dos que se alimentam exclusivamente da «ética da convicção», sem exigências de responsabilidade nas escolhas políticas. Só que o eleitor moderado que hoje vota «Bloco» não manterá eternamente esta posição, sobretudo se verificar que o seu voto, não servindo à esquerda, acaba por servir à direita.
E se Louçã, como diz, quiser disputar a liderança ao PS, então ele terá que acabar com as ambiguidades e identificar-se claramente com aquele que é o espaço político-ideal ocupado por este partido, o do socialismo democrático. Porque a verdade é que não se conhece outro espaço político moderado de esquerda alternativo ao modelo burocrático do PCP. Louçã está pronto a confinar o seu discurso, em política como em economia, à estratégia das «grandes correcções»? Mas será isto possível sem uma implosão do «Bloco de Esquerda»?
Partido ou movimento?
E começo por notar, no discurso de Louçã, uma primeira indefinição: o «Bloco» é um partido ou um movimento? Ele não no-lo diz, apesar de todos sabermos que não são a mesma coisa. Os partidos têm uma estrutura organizativa estável, uma ideologia, uma identidade, aspiram ao poder, reconhecem-se num líder, legitimado por eleições internas. Os movimentos são federações de causas, não são organicamente estáveis, não têm uma identidade ideológica clara, precisamente porque se organizam em torno de causas concretas. E o «Bloco», na verdade, ainda continua a querer parecer-se – até no nome e nos próprios Estatutos - mais com um movimento do que com o partido que cada vez mais é. Quem o diz é Daniel Oliveira, que o conhece bem: «Com mais peso eleitoral, o Bloco parece ser hoje um partido menos plural, mais ideológico, mais concentrado na figura do seu líder, com maior peso político do seu aparelho e mais parecido com o PCP do que era há dez anos» («Expresso», 29.08.2009). Então, por que razão Louçã não o assume, em vez de dizer que o BE representa as duas coisas, a legal e a substancial? Parece que na origem foi mesmo assim: federaram-se em torno de causas concretas, sem discutir identidades. Tratou-se de um método. Que se revelou eficaz. Por isso, se calhar, Louçã não pode ser mais claro, ir mais longe do que o Art. 1º. dos Estatutos do «Bloco», mantendo essa margem de ambiguidade e de mistério sedutor que atrai jovens e cultores da utopia e do movimento. Até porque, eventualmente, essa ambiguidade e esse mistério, sendo certamente condições de existência, são, ao mesmo tempo, condições de sobrevivência ou até mesmo condições do seu próprio sucesso. Diria até que as remotas origens das tendências que integram o «Bloco» (comunistas, trotskistas, maoístas…) permanecem como referências não expressas, mas ideologicamente motivadoras de uma formação política que cada vez mais está a tornar-se um partido com características tradicionais, onde a lógica e o peso da organização chupam a alma do movimento. Essas remotas origens, de sabor revolucionário, utopistas e vanguardistas, estão bem presentes – e creio que não sob forma recalcada – neste partido/movimento que lhes permitiu – sem problemas de consciência (política), mas certamente com muitas reservas mentais – aceder, com sucesso, ao coração da democracia representativa. Agora, a questão reside em saber se o acesso foi mesmo à democracia representativa ou se foi um acesso puramente instrumental à chamada democracia burguesa. Neste último caso, persistirão as reservas mentais da consciência política. No primeiro caso, o «Bloco» experimentará uma profunda angústia feliz. Mas uma angústia feliz (um crescimento eleitoral que o pode tornar feliz, mas que exige dolorosas clarificações e ainda mais dolorosos compromissos) que não pode durar muito tempo, como muito bem diz Daniel Oliveira, nas páginas do «Expresso».
A questão da identidade
Sobre a identidade, depois, Louçã também é indefinido: trata-se de uma esquerda socialista, que rejeita a desigualdade social e a exploração, mas que rejeita também o modelo do socialismo burocrático e monopartidário. Depois, fala de confrontação e de alternativa ao capitalismo existente, mas não avança mais. Mas, se é esta a identidade do «Bloco», suspeito que não se distinga em nada daquele que foi o tradicional posicionamento identitário dos partidos socialistas e sociais-democratas. O que, a ser assim, me levaria a pensá-la como experiência passageira, equivalente às que vimos acontecer, por exemplo, no longo historial da esquerda francesa. Ou seja, uma evolução no sentido moderado pô-lo-ia no arco do socialismo democrático, sujeito às reacções intempestivas das suas tendências mais radicais, enquanto uma inflexão no sentido mais radical empurrá-lo-ia para uma lógica de «aggiornamento» do comunismo, em competição aberta com o PCP. Eu creio que o «Bloco» está a tentar esboçar uma linha de renovação política da esquerda, com algumas rupturas imprescindíveis ao seu vanguardismo civilizacional e para manter a tensão ideal das suas tendências, mas também para colher bons frutos eleitorais no desencanto generalizado dos cidadãos, e com uma calculada moderação que o torne politicamente confiável, não assustador e capaz de «desbloquear» - como, ao que parece, foi a sua motivação primeira – uma esquerda que dizem permanecer rígida nas suas posições políticas e ideológicas. E eu creio que, na verdade, aos partidos de esquerda está a faltar uma cultura política que repense radicalmente os processos de legitimação interna (introduzindo, por exemplo, primárias abertas) e que promova processos de reconhecimento, de motivação e de integração política não instrumentais de quantos se destacam na sociedade civil pelos seus méritos próprios, ao mesmo tempo que imponha, com firmeza, a defesa do interesse geral, com flexibilidade política tanto quanto possível e com rupturas sempre que necessário. Tarefa tanto mais necessária quanto vivemos numa sociedade com propensão corporativa, hoje muito animada pela sua forte capacidade de expressão no espaço público, e tão difícil de executar, como se verificou ao longo dos anos de governo de José Sócrates, que desta orientação fez linha firme de rumo essencial. Mas a verdade é que desta mesma cultura não encontramos grandes traços no «Bloco», tão preocupado que está em federar os descontentamentos. Antes pelo contrário, até parece que começa a inflectir para posições mais próprias dos partidos políticos tradicionais, fruto da afirmação crescente de uma implacável lógica organizacional.
A esquerda e as elites
Mas no discurso de Louçã surpreendeu-me também o reconhecimento da teoria da circulação das elites alternativas - tão presente na tradição política da direita -, não só no plano do exercício do poder político electivo como também no plano do exercício do serviço público e administrativo, distanciando-se, nisto, do discurso do PCP, mais propenso a um discurso populista e anti-elites. Pelo contrário, já não me surpreendeu tanto o discurso catastrofista em relação a Portugal («há um fracasso do regime político em Portugal, porque há um fracasso do regime económico» ou, ainda mais radicalmente, na entrevista ao «Expresso», de 29.08: «está a haver um colapso do regime político, dos partidos tradicionais e da estrutura de poder»), habituado que estou a ver aquelas peças de oratória parlamentar sobre os perdidos deste mundo e a missão redentora das elites bloquistas. Mas, depois, sobre o modelo económico, volta a ser moderado e só fala de «grandes correcções», não já de modelo alternativo. A ambiguidade continua.
Estilos
Depois a moda. Sim, concordo, de certo modo, com Louçã, dizendo que a moda dura há demasiado tempo para se reduzir a uma questão de estilo. Mas a verdade é que as características deste «Bloco» estão muito centradas no estilo, e não só por dificuldade de produzir um discurso de substância que não seja exclusivamente crítico, mas propositivo e politicamente viável. A oratória da redenção é estilo. De certo modo, o estilo também é a mensagem. Afirmar-se como movimento, mesmo quando já mais se parece com um partido, não é certamente só uma questão de estilo, mas também é, se o meio for a mensagem, como dizia McLuhan. Por que razão os bloquistas não usam, por norma, gravata, no Parlamento? A gravata está associada à democracia burguesa, ao formalismo burguês? Ou é uma questão de estilo? Por outro lado, o catastrofismo discursivo («o colapso do regime político») se não é uma moda em sentido estrito, pelo menos rende audiências e até pode transformar-se num estilo (a famosa cassete do PCP) ou mesmo numa mundividência muito próxima daquela que via este mundo como um imenso vale de lágrimas. Com uma diferença: a de que a redenção estaria do lado de cá. É claro que, em tempo de crise das mundividências e das ideologias, o estilo domina o espaço público, sobretudo lá onde os movimentos sociais são algo fragmentários e resistentes à afirmação de uma identidade político-ideal própria. O estilo, de resto, é figura central em tempos de pós-modernidade, onde a profundidade temporal não tem direito de cidadania.
«Economia de ganância»
O que me surpreende é a pobreza conceptual do discurso de um líder com as reconhecidas competências de Francisco Louçã. Ma non troppo. É que, provavelmente, o problema reside não tanto no seu discurso, mas na natureza do referente, qual gigantesco caldeirão de tendências difíceis de unificar num discurso identitário que não seja através da categoria do negativo ou do resgate moral de uma sociedade estruturalmente boa, mas corrompida pela «economia de ganância», «alla faccia» de Fareed Zakaria e do seu «Capitalist Manifesto: Greed is Good». Só que esta ambiguidade não pode permanecer por muito tempo. Até porque o terreno em que se move o «Bloco» é um terreno muito mais móvel do que parece, à excepção daquela pequena franja dos que se alimentam exclusivamente da «ética da convicção», sem exigências de responsabilidade nas escolhas políticas. Só que o eleitor moderado que hoje vota «Bloco» não manterá eternamente esta posição, sobretudo se verificar que o seu voto, não servindo à esquerda, acaba por servir à direita.
E se Louçã, como diz, quiser disputar a liderança ao PS, então ele terá que acabar com as ambiguidades e identificar-se claramente com aquele que é o espaço político-ideal ocupado por este partido, o do socialismo democrático. Porque a verdade é que não se conhece outro espaço político moderado de esquerda alternativo ao modelo burocrático do PCP. Louçã está pronto a confinar o seu discurso, em política como em economia, à estratégia das «grandes correcções»? Mas será isto possível sem uma implosão do «Bloco de Esquerda»?
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