João de Almeida Santos
(Novo!) (Publicado também em «Comunicacion/es» - www.tendencias21.net - com introdução em espanhol)
Se é possível ler os «códigos genéticos» da direita e da esquerda, esta tem de desenvolver uma nova «ontologia da relação», propondo novas leituras sobre a sociedade e sobre si própria, em linha com o seu código genético, mas também com as fortes tendências que se exprimem num mundo cada vez mais global.
1. Uma «ontologia da relação». 2. Fracturas e interrogações. 3. A esquerda e a natureza humana - uma questão de fundo. 4. Repensar a esquerda, repensando a sociedade. 5. Uma visão «espacial» da política. 6. A esquerda e o Estado Social. 7. A esquerda e os intelectuais.
1. Uma «ontologia da relação»
Num tempo em que da política já só restam, aparentemente, técnicas de marketing para os rostos dos líderes, tem mais sentido reflectir sobre as identidades que esses rostos de algum modo representam. Ocupo-me da esquerda. Afinal, que questões se põem hoje à esquerda? A uma esquerda que seja tão radical nos seus pressupostos filosóficos, nos seus valores, princípios e ideais - no seu élan propulsivo (a ética da convicção) -, quanto moderada nos programas com que se propõe governar – o seu pragmatismo (a ética da responsabilidade). Porque se a esquerda tem inscrita no seu código genético a palavra «utopia», ela própria, inspirando-se em valores projectados no futuro e numa forte «ética da convicção», cruza inevitavelmente, mais do que os liberais, o seu destino com o da democracia representativa. E porque, ao contrário do que pensam os «decisionistas» ou os absolutistas da «ética da convicção», a democracia implica compromisso, diálogo, interacção, isto é, uma «ética da responsabilidade» que modera e regula a força propulsora das convicções. Liberdade e responsabilidade, portanto. A esquerda e a democracia têm também inscrita na sua matriz a palavra igualdade. Alexis de Tocqueville viu isso como ninguém. A sua era a «igualdade de condições». Mas já a direita não pode dizer que as palavras democracia, igualdade e liberdade façam parte do seu código genético. Porque até os primeiros liberais (na altura, os progressistas) eram antidemocráticos («democráticos e quase comunistas», dizia o liberal Croce) porque anti-igualitários e avessos ao sufrágio universal (censitários: veja-se a constituição francesa de 1791, os escritos de Kant ou de Constant) e cedo (e muitos) toleraram (em Itália, por exemplo) soluções políticas autoritárias. Ao princípio, em Itália, o próprio Benedetto Croce, esse «Papa laico» italiano, como lhe chamou Antonio Gramsci. De resto, os valores matriciais da direita são a ordem, a diferença (a desigualdade) e a hierarquia (Ernst Nolte). Dizendo-o, com o Bobbio de «Destra e Sinistra», a esquerda, no signo de Rousseau, afirma que, à partida todos são iguais, sendo a sociedade (e os seus mecanismos) a fomentar, quando mal organizada, as desigualdades. Que, por isso mesmo, são sociais, não naturais. Pelo contrário, a direita, no signo de Nietzsche, afirma que, à partida, todos são desiguais, sendo a sociedade quem, indevidamente, torna igual o que igual não é, tornando-se, assim, necessário o aprofundamento das singularidades e a minimização dos mecanismos sociais ou públicos de integração. É por isso que uma esquerda que se preze tem de sublinhar esta diferença matricial entre a esquerda e a direita. Não para se limitar a cantar e a glorificar os seus valores de referência ou para exercer a função exclusiva de eterno sindicato dos deserdados, mas para colocar os valores da liberdade e da igualdade no seu devido lugar. Porque foi o uso arbitrário destes valores que levou, por um lado, ao totalitarismo (o igualitarismo) e por outro, ao utilitarismo mais desbragado (o neoliberalismo): igualitarismo da miséria e darwinismo social, socialismo de Estado e neoliberalismo. Mas se é possível ler os códigos genéticos da direita e da esquerda, também é verdade que a leitura desses códigos não é suficiente para uma afirmação política da esquerda: esta tem de fazer uma fenomenologia crítica do existente ou, melhor, uma ontologia do presente, ou melhor, ainda, uma ontologia da relação, propondo novas leituras em linha com o seu código genético. O que é uma «ontologia da relação»? O reconhecimento de que o modelo de relação centrado no sujeito e no objecto, ou no emissor e no receptor, cedeu o seu lugar a um modelo de relação centrado no espaço intermédio, a um modelo relacional onde os sujeitos se comportam como variáveis num sistema sem perderem, ao mesmo tempo, a sua dimensão subjectiva ou substancial. E a Rede é o melhor modelo para relançar a reflexão porque ela é, ao mesmo tempo, um conceito e um facto, ou seja, uma realidade que já está a estruturar – para além das fronteiras territoriais nacionais – novos tipos de relação que nada têm a ver com o módulo moderno e espacial de relação e de representação (veja-se, aqui, o meu ensaio «O espaço intermédio», a propósito do livro de Silvano Tagliagambe, «Lo spazio intermedio»). É neste espaço intermédio e nesta lógica relacional que se pode identificar uma esquerda que queira superar uma lógica do sujeito, meramente instrumental, própria da sociedade de massas, da «democracia do público», da era do «spinning» e de uma visão meramente utilitarista da própria natureza. Neste espaço, que poderíamos identificar como um espaço reticular, pode emergir finalmente um indivíduo moderno livre de vínculos e capaz de irromper directamente, sem mediadores ou «gatekeepers», no espaço público, graças exclusivamente à sua competência social. Ou seja, estamos perante um novo espaço comunitário que não só não anula a individualidade como ainda a reforça. Mas este não é o espaço de uma esquerda que ainda se move por módulos comunitaristas e antilibertários, centrados exclusivamente na «ética da convicção».
2. Fracturas e interrogações.
Poderíamos perguntar: as fracturas sociais da sociedade pós-industrial – aquela que foi inaugurada pela revolução da microelectrónica - são as mesmas da velha sociedade industrial, com as grandes concentrações operárias, o fordismo e o taylorismo? Que efeitos sociais produziu a generalização das, humanamente desérticas, linhas de «robots» de comportamento não determinístico, vigiadas pelos poucos e novos «operários» de bata branca, os «condutores»? O novo conceito de «middle class», não patrimonial, profissionalmente instável e culturalmente nómada, que lugar ocupa na reflexão estratégica da esquerda? Que resposta tem a esquerda para os novos poderes das novas elites «manageriais» e mediáticas? Que balanço é feito do Estado social, visto que a sua crise se tornou crónica? A responsabilidade da sua crise reside, ou não, no excesso de procura e na debilidade da oferta, mesmo quando é a esquerda a governar? Ou seja, a sua crise resulta, ou não, de uma contradição interna, e genética, que o pode levar a uma espiral autodestrutiva? Continua a esquerda a ler as «indústrias culturais» com as velhas categorias adornianas (da «Dialéctica do Iluminismo», de 1944) e, portanto, a remetê-las para a esfera da alienação? A televisão é o novo inimigo de direita e tudo o que lhe seja funcional é (deve ser) combatido pela esquerda como deriva populista? Qual o papel dos «media» na nova hierarquia dos poderes? A «partidocracia», à esquerda e à direita, não continua a afectar gravemente a democracia, confiscando direitos aos cidadãos? Qual é a solução? E a tão falada «mediocracia»? Que papel tem na erosão da democracia representativa e na queda tendencial do valor de uso do voto? Como se transforma a «cidadania passiva» em «cidadania activa»? Como libertar o cidadão da nova «gaiola electrónica» que substituiu essa «gaiola de aço» de que falava Max Weber? A esquerda incorporou radicalmente na sua matriz o individualismo moderno ou pretende superá-lo promovendo novas expressões de sociabilidade comunitária? A esquerda moderada e de governo assume definitivamente causas electivas ou mantém-se prisioneira do pragmatismo? E a Internet e as comunicações móveis, revolucionando radicalmente as relações, que lugar devem ocupar no pensamento da esquerda? O «espaço intermédio» que elas hoje ocupam não exige que a esquerda formule uma nova «ontologia da relação», para além da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, meio-fim e de qualquer conceito instrumental das relações humanas? Há muito que se fala de crise de representação e ninguém responde a esta crise. Agora até já se fala de democracia pós-representativa e poucos são os que se preocupam com a mudança de paradigma político que já estamos a viver. O protagonismo político dos «media» rivaliza hoje com o dos partidos, mas ninguém os confronta com a questão da legitimidade.
3. A esquerda e a natureza humana - uma questão de fundo.
A esquerda sempre se confrontou com um desafio a que nunca foi capaz de responder claramente: o desafio de assumir uma ideia complexa de natureza humana. Por uma razão essencial: esta ideia era considerada incompatível com a dinâmica transformadora do processo histórico-social. Porque a esquerda sempre viu o processo humano como processo histórico-social em devir, onde a componente natural ocupava sempre uma posição puramente subalterna ou mesmo residual. Outra coisa era atribuir-lhe leis de desenvolvimento de tipo determinístico, como viria a fazer o marxismo ortodoxo. Se tivesse de falar de natureza humana, a esquerda clássica diria sempre que ela é o resultado de um processo, não estando, pois, predeterminada. Os existencialistas traduziram esta ideia através daquela conhecida fórmula de que «a existência precede a essência». E, antes, creio, Gramsci traduziu-a por aquela outra feliz expressão de que o homem é aquilo em que se torna («è ciò che può diventare»). Mas a verdade é que há, em Marx, páginas muito interessantes, nos «Manuscritos de 1844», onde a dimensão natural da vida em comunidade é muito valorizada e onde a natureza é considerada como «corpo inorgânico do homem». De qualquer modo, a ideia de que existem no ser humano determinadas características estruturais comuns que, na sua aleatoriedade, tendem a manifestar-se recorrentemente na vida em sociedade, sendo reconduzíveis aos próprios indivíduos singulares, nunca foi muito acarinhada conceptualmente pela esquerda. As características comuns, naturais e morais, eram tendencialmente distribuídas por classes sociais, tendo, depois, uma sua expressão política. A ideia genérica de que o «homem é o lobo do homem» («homo hominis lupus») tem, na visão da esquerda clássica, uma concreta tradução de classe: o homem-lobo e o homem-cordeiro representam classes antagónicas. A natureza humana, que aqui surge como aleatória e transversal a todos os indivíduos, na lógica da esquerda fracturava-se em função das classes. Se, no utilitarismo, a pulsão egoísta orientada para o útil podia converter-se em benefício colectivo, à esquerda este só podia ser obtido por intervenção da «razão pública». A esquerda sempre acreditou na força criativa da sociedade contra os determinismos conservadores que habitualmente legitimam a ordem vigente. Sempre acreditou na ideia de um progresso contínuo. Esta crença no valor taumatúrgico da dinâmica social levou-a, contudo, a desvalorizar a força das pulsões estruturais que sempre persistem e condicionam o processo social, para além do princípio da razão. Lá onde a esquerda tem procurado usar a razão para canalizar um processo histórico-social considerado progressivo, muitas vezes tem esquecido o papel resistente dessas pulsões estruturais que também condicionam o curso histórico. Alguém dizia que a ideologia é eterna e que, mesmo quando parece que morre, sempre há-de ressurgir, de novo vigorosa, em tempos futuros. Também Jürgen Habermas, recentemente, nos chamados «Seminários de Istambul», parece ter revalorizado o papel das religiões nas chamadas sociedades pós-seculares. Ou seja, de algo que a esquerda sempre tendeu a remeter para o domínio da pura alienação, não admitindo que essa possa ser uma componente estrutural da natureza humana, ligada à ideia de finitude, necessária e sofrida. Mas é claro que a esquerda muito ganharia em compreensão do mundo se incorporasse estes dados rejeitados na sua rede conceptual e procurasse integrá-los numa lógica racional superior, sem qualquer veleidade construtivista, projectando esse «corpo inorgânico», de que falava Marx, sem o esmagar com a força do voluntarismo ético. Toda esta lógica está, afinal, envolvida por um voluntarismo moral («ética da convicção») que dificulta o reconhecimento das reais fracturas sociais e, por isso, uma sua correcta interpretação e superação. Na verdade, o reconhecimento de que as sociedades humanas estão também elas condicionadas por determinismos de tipo estrutural torna-se decisivo. Até porque ele é condição necessária de alguns dos valores mais importantes das democracias modernas: a tolerância e o respeito recíproco, o realismo político e o compromisso, a liberdade responsável. É neste reconhecimento que reside a capacidade de progredir de forma sustentada, reconduzindo o exercício da vontade política ao equilíbrio social. Conjugando optimismo da vontade com pessimismo da razão, num quadro onde a ética se funde com a política.
4. Repensar a esquerda, repensando a sociedade.
Mas a tendência a repensar a esquerda continua a ser mais interrogativa do que propositiva, afirmando-se mais como proclamação de intenções do que como concreta reflexão analítica sobre o assunto. Repensar a esquerda ou repensar a sociedade? Eu creio que para repensar a esquerda é preciso, antes, repensar a sociedade. E é preciso também abandonar as proclamações morais, indo directamente ao assunto. E, para ir ao assunto, é preciso reflectir sobre as mutações profundas que estão a revolucionar a democracia, os novos modelos de desenvolvimento, as novas formas pós-orgânicas de reorganização política da sociedade, o papel do indivíduo no conjunto orgânico de uma sociedade onde parece ser o intangível a ditar as regras essenciais, o papel do Estado, o papel dos meios de comunicação. Eu diria que sem uma fenomenologia rigorosa da sociedade moderna não é possível compreender o lugar da esquerda na sociedade. É certo que muitos dizem que a distinção esquerda-direita já não faz sentido. Outros dizem que quem assim pensa é de direita. Uma coisa é certa: não é possível repensar a esquerda como se esta fosse uma condição. Sobretudo a condição dos deserdados, mas também dos seus apóstolos. Todos sabemos que não é assim. Todos sabemos que o conservadorismo atravessa todos os grupos sociais, sendo transversal. Tal como o progressismo. Mas, aqui como ali, há sempre apóstolos vocacionados para as grandes proclamações morais, assumindo-se como eleitos e como depositários da justiça histórica dos povos. Como todos os apóstolos, eles pertencem ao reino do imaterial e preocupam-se pouco com as coisas concretas e muito com os grandes princípios. E como entre o material e o espiritual sempre foi difícil encontrar a justa adequação, o seu papel está garantido até ao fim dos tempos. Outra coisa é o esforço analítico de descrição e de explicação dos mecanismos sociais e a tentativa de os aperfeiçoar, melhorando a sua «performance». Por exemplo, que modelo de desenvolvimento terão de adoptar as sociedades modernas para se adaptarem às novas exigências globais e desiguais da competitividade? O «suor do rosto» continua a ser a principal força produtiva ou já foi substituído pela ciência e pela tecnologia, como principais forças produtivas? A resposta implica consequências impressionantes no modelo de organização social. Outra questão, de resto, ligada com esta. As sociedades modernas estão estruturadas em grandes blocos sociais, as ditas classes, ou a sua organização é cada vez mais de tipo superestrutural, uma vez que elas estão fragmentadas, sendo constituídas por indivíduos? Ou seja, a componente orgânica não cedeu definitivamente a sua centralidade a uma recomposição formal e abstracta das relações sociais? Terceira questão. O modelo de organização democrática das sociedades não pressupõe precisamente esta desestruturação das sociedades orgânicas e a sua recomposição a partir da soberania individual? Que sentido tem a frase «um homem, um voto»? Quarta questão. Neste contexto, que democracia? A democracia representativa, tal como a temos vindo a viver ainda continua a manter validade plena ou já estamos a evoluir para um novo tipo de organização democrática, pós-representativa, onde cada vez mais começam a exprimir-se mecanismos de democracia directa de novo tipo? Ou seja, mantendo-se como seu fundamento o indivíduo singular, não estão alteradas radicalmente as condições da sua participação na produção da decisão política colectiva? Ou melhor: não se está a verificar uma alteração radical nas formas de expressão política do cidadão quando os partidos políticos cedem cada vez mais o terreno aos meios de comunicação, desde a televisão até às suas formas mais avançadas de «comunicação individualizada de massas», na Rede (Castells)? Quinta questão. E o Estado, como se comporta perante tal evolução? Não terá de se transformar para responder às novas exigências emergentes? De certo modo, o «e-government» já constitui uma primeira resposta. Mas outra resposta deverá consistir na determinação da sua natureza reguladora, nem maximalista nem minimalista. Sexta questão. E os partidos políticos, como é que podem responder a estas transformações, garantindo uma efectiva autonomia, capacidade de agenda e relação, orgânica e inorgânica, com a sociedade ao mesmo tempo que resolvem o bloqueio burocrático interno? A solução não passará pela introdução de autênticas primárias generalizadas, como método para a selecção e de legitimação interna? É confrontando-se com estes temas que se pode responder à pergunta sobre a esquerda.
5. Uma visão «espacial» da política.
A análise que circula continua excessivamente apoiada numa visão «espacial» ou «geométrica» da política: esquerda, direita, centro, centro-direita, centro-esquerda, extrema-esquerda, extrema-direita. É certo que os conceitos de esquerda e de direita possuem já um património analítico tal que estão em condições de designar algo bem preciso. Mas há um conceito que é tanto mais usado quanto menos é definido: o conceito de centro. Centro geométrico, centro sociológico, centro político? Mas, afinal, o que é o centro? Eu creio que quando se fala de centro se está a falar necessariamente da nova «middle class». Na linguagem marxista clássica, o centro nem sequer tinha grande dignidade conceptual, espartilhado que estava por aquela contradição fundamental que determinava a vida social: a contradição entre os proprietários dos meios de produção e os assalariados. Mas a tradição sociológica passou a definir os grupos sociais não só em termos de relações de produção, mas também com critérios, digamos, superestruturais: estilos de vida, influência, capacidade de consumo, etc.. Em particular, a sociedade pós-industrial provocou o crescimento de um sector social intermédio que possui características comuns a ambos os lados, a proprietários e a assalariados. A democracia, com a laicização integral das funções sociais, cresce, aliás, com o crescimento deste sector. E, este, reforça-se com a democracia. A própria democracia é o regime mais congenial a este sector, isto é, à «middle class». Mas a classe média já existia na chamada civilização industrial. Só que, antes, as suas características eram bem diferentes da actual. Tratava-se de uma classe patrimonial, de profissão e rendimentos estáveis, com uma mundividência estruturada e global, culturalmente sedimentada, com valores morais bem definidos e uniformes, com clara afirmação e reconhecimento social de tipo territorial, não sendo maioritária na sociedade. A nova classe média da era pós-industrial define-se mais por critérios de tipo superestrutural, por estilos de vida, capacidades e hábitos de consumo, mobilidade profissional e territorial. É existencialmente nómada e culturalmente precária, massificada, anónima e socialmente dominante. Como diz Giddens: «a velha economia industrial foi inexoravelmente substituída por um novo modelo económico baseado no saber, e a classe média tornou-se já o grupo socialmente dominante». Uma classe média centrada no terciário e nos novos sectores de negócio que têm origem na nova economia do conhecimento. É por isso que a esquerda de hoje não pode, pois, construir o seu quadro de referência político-ideal a partir daquela que era a sua base social de apoio tradicional, de sectores sociais que a história está a tornar residuais. A ideia de que a esquerda deve propor à vastíssima e heterogénea classe média um discurso feito à medida de grupos sociais que já são historicamente residuais - porque se recusa a reconhecer como dominante uma economia de tipo pós-industrial e uma sociedade onde os processos informacional e comunicacional já transformaram completamente as relações sociais e os comportamentos individuais - significa agir no presente com os olhos postos no passado, quando o horizonte próprio da esquerda sempre se situou no futuro. É certo que os valores da esquerda persistem no tempo e são transversais aos vários grupos sociais. Mas os seus conteúdos mudam com os tempos. Exercer a liberdade em democracia não é o mesmo que exercê-la durante a ditadura: as formas da opressão deixaram de ser físicas para passarem a ser simbólicas. E a opressão simbólica tem de combater-se com instrumentos mais sofisticados do que a resistência física. Em democracia, a universalização dos direitos formais, aliada ao igualitarismo do consumo, produz uma imagem do mundo igualitária, precisamente quando se insinuam cada vez mais novas formas de discriminação. Sob o manto formal da democracia também a luta pela igualdade (e pelo direito à diferença) exige novos e mais sofisticados instrumentos. Mas também o cidadão se tornou mais complexo nas modernas sociedades democráticas. Ele exibe hoje dimensões que outrora estavam mitigadas. Por exemplo, na moderna sociedade de serviços, o cidadão-consumidor emerge como sujeito central de direitos a tutelar. Uma esquerda com futuro não pode deixar de o integrar como elemento central do seu quadro de referência político-ideal e para além das tradicionais fracturas de classe. Numa palavra, uma esquerda moderna não olha para o futuro com os olhos do passado.
6. A esquerda e o Estado Social
Um artigo de Rui Ramos, de 2008, publicado no «Público» (23.07) e intitulado «Os pobres de Estado», fez-me regressar a um tema central na discussão em torno da identidade da esquerda: o tema do Estado Social. Ressalvo, em relação a tudo o que a seguir direi, que não me parece feliz o título do artigo, pela carga depreciativa que encerra. Mas não deixo de reconhecer pertinência à crítica de Rui Ramos. Porque ele põe em evidência um paradoxo muito comum numa certa esquerda: reivindica tão radicalmente os direitos sociais que o resultado acaba por ser oposto ao que proclama - a permanente dependência do Estado Social (exemplo meu: Francisco Louçã que «sente uma revolta enorme», porque «se possa impor a uma pessoa que tem subsídio de desemprego a obrigação de ir trabalhar por um pouco mais do que o subsídio que recebia», DN, 28.03.2010, p.9). Mas critica também uma certa ideia de construtivismo social: uma lógica auto-referencial que vê os necessitados como laboratório social das suas próprias concepções do mundo. E conclui dizendo que a luta pela libertação social dos necessitados acaba por resultar num novo tipo de opressão de Estado. Por isso lhes chama «pobres de Estado». Há, neste interessante artigo de Rui Ramos, mais retórica e menos substância do que, à primeira vista, pode parecer. Mas há também a sinalização de problemas ligados ao modelo persistente de Estado Social. Sobretudo ao modelo maximalista. Aquele modelo que adoptou a cultura dos direitos como matriz exclusiva das suas políticas. E que vive do garantismo como seu alimento político exclusivo e quotidiano. Um modelo onde a pobreza representa o principal capital político, sendo o seu volume directamente proporcional à depressão económica e social dos países. Um modelo que, à força de reivindicar sempre direitos acaba por legitimar a irresponsabilidade, a ausência de sentido do dever, de empenho e de luta individual por uma vida melhor e mais livre. Compreende-se. Esta é, aliás, uma visão organicista da sociedade, onde a responsabilidade individual se dilui sempre na responsabilidade colectiva. Mas se, depois, a responsabilidade colectiva acaba por se esgotar sempre na luta pelos direitos orgânicos das comunidades, a responsabilidade individual esvai-se e anula-se. De resto, esta lógica não decorre directamente da estrutura nuclear da democracia representativa, cujo fundamento, digamos, ontológico, é o indivíduo singular: «um homem, um voto». Diria mesmo que ela representa a tábua de salvação para os que sempre mantiveram reservas mentais em relação à democracia representativa. Constitui o enxerto político necessário para poderem agir com boa consciência no interior daquela que sempre rotularam como democracia burguesa. Toda a gente entende o que quero dizer. Ora, na lógica a que se refere criticamente Rui Ramos, os indivíduos singulares são sempre tutelados pelo Estado Social e, por isso, na sua perspectiva, ela acaba por induzir um processo de permanente submissão à vontade do Estado e da sua máquina protectora, com a consequente anulação do princípio da liberdade, que só a responsabilidade individual pode gerar. É por tudo isto que se torna necessário clarificar a natureza do Estado Social e a relação da esquerda com este conceito. Em primeiro lugar, recusando as leituras maximalistas. É claro que as sociedades têm o dever de garantir os «bens públicos» essenciais, bem mais vastos do que as funções estritamente vitais do Estado. Mas nenhum Estado Social pode sobreviver a uma lógica construtivista e a uma filosofia maximalista dos direitos sociais. Por uma razão muito simples: uma e outra convergem para o agigantamento de um Estado que tende a atrofiar a sociedade civil, acabando ele mesmo por implodir, fruto de um excesso de procura para o qual acaba por não ter resposta. Na verdade, aquilo que a esquerda radical ainda não compreendeu foi que a uma cultura de direitos, essencial à democracia representativa, deve corresponder uma outra cultura de deveres tão intensa como aquela. Só que esta não pode emergir no interior de um pensamento que ainda não superou, a não ser numa óptica puramente instrumental, uma cultura política organicista, hoje absolutamente superada pelas democracias modernas. A vocação organicista e moralista da esquerda radical acaba sempre por produzir o atrofiamento da emancipação individual e por contrariar aquela que é a vocação originária da própria democracia representativa.
7. A esquerda e os intelectuais
Finalmente, a questão dos intelectuais. E começo por referir uma entrevista do filósofo francês Alain Badiou a «Le Monde» que deu que falar. Nela, ele declarava o fim – desejado – do «intelectual de esquerda». A coisa pareceu ganhar mais sentido após a debandada geral de ilustres figuras do PS francês para o projecto sarkoziano. De qualquer modo, o caso intelectualmente mais flagrante, depois de algumas viragens já verificadas durante a corrida presidencial de Ségolène Royal e do caso Kouchner, foi a transmigração do pós-moderno ex-ministro socialista da cultura Jack Lang. Dizia Badiou: «esta adesão a M. Sarkozy simboliza a possibilidade, para intelectuais e filósofos, de serem, doravante, reaccionários clássicos “sans hésitation ni murmure”, como diz o regulamento militar». (…) «Nós vamos assistir – ao que eu anseio – à morte do intelectual de esquerda, que vai soçobrar ao mesmo tempo que toda a esquerda, antes de renascer das suas cinzas como a fénix». Aqui, a verdadeira questão consistiria em saber o que é a esquerda, não antes de saber em que consistiria o ser-intelectual. Na França de hoje, o problema é complexo, reconheçamos. Mas, em boa verdade, há muito que estamos a assistir à morte do «intelectual», do «filósofo», do «maître à penser». Que, na verdade, tem o seu ADN à esquerda, apesar do(s) excelente(s) Aron(s). Permitam-me recordar que, disto, muito falei no meu livro de 1999, «Os intelectuais e o Poder» (Lisboa, Fenda): que acabaram os sartres. E que Sartre foi, talvez, o último dos «maîtres à penser». Que estes acabaram ao mesmo tempo que as «grandes narrações». Que acabaram quando acabou a densificação do tempo vivido, a identificação territorial dos percursos de vida, a exaltação da memória. E quando o princípio da esperança se desligou do futuro. Quando o presente se impôs como ditadura e as ideologias se diluíram, sendo substituídas por fugazes e superficiais estilos de vida. A verdade é que os intelectuais não eram simplesmente autores de livros ou de ensaios. Eram, isso sim, autores de ideologias, de mundividências, de concepções do mundo. Demiurgos. Eram artífices de ideias projectadas no futuro, mas com capacidade propulsiva sobre o presente, como se fossem forças materiais, físicas, sujeitas à lei da gravidade. Substituíam-se, com eficácia, às religiões e projectavam a laicidade à categoria de concepção do mundo. Construíam vastas redes de pertença, onde se reconheciam inteiros grupos sociais. O pensamento tornava-se norma de comportamento, atitude, ética, sentido. E eles emprestavam um certo heroísmo de atitude à esquerda, uma certa nobreza, para não dizer uma certa superioridade moral. Nada disto subsiste. Tudo se fragmentou. Até as causas, que passaram a ser especialidades de uns tantos profissionais. O fim das grandes narrações, a ditadura do presente, o triunfo do inorgânico, a velocidade, o tempo como sucessão de instantes absolutos, o indivíduo como função do inorgânico, o império do simulacro, tudo isto gerou uma nova rede social onde não há lugar para os velhos intelectuais. O novo intelectual é o «fast-thinker». O «Lucky Luke» do pensamento e da palavra. O velho «maître-à-penser» deu lugar ao novo «prêt-à-penser», que ocupa os interfaces da comunicação como seu ambiente natural. Está por todo o lado e ao mesmo tempo. É um clone de si próprio. Fala de tudo como se de tudo fosse especialista. E ao ritmo da comunicação electrónica. O «sound byte» é a medida do seu discurso. Ele é uma espécie de centauro: meio intelectual, meio publicitário. Assume o meio onde comunica como «púlpito» onde exerce o poder da palavra, olhos nos olhos com o público, essa «multidão solitária» que se une em torno do terminal electrónico onde ele pontifica. Este é o novo intelectual «tout court». Já nem de esquerda nem de direita. Mais do que de esquerda ou de direita, o novo intelectual é orgânico do inorgânico, do simulacro, da velocidade, da emoção curta e eficaz, do discurso binário, da urgência do presente, do negativo. Não cria nem representa ideologias ou concepções do mundo. Representa-se a si próprio e age como se fosse o umbigo do mundo. Ora, quando a política começa a exibir excessivas afinidades com este universo discursivo dos novos intelectuais do vídeo, torna-se necessário reivindicar o regresso em força do orgânico, contra os cavaleiros do simulacro. O que em si representa uma eventual regressão da própria esquerda. Mas eu diria, à esquerda, que o regresso do orgânico só pode ser hoje representado pela irrupção do indivíduo, fisicamente determinado e livre de vínculos orgânicos no seu mandato de cidadania, na nova cena comunitária global.