«Cosmopolis»
Un Nuevo Paradigma para el Siglo XXI
Podríamos hablar de «Cosmopolis» si quisiéramos hablar del nuevo mundo que el futuro nos está ofreciendo. Un mundo que es más que aquella «lógica globalitaria» que, cada vez más, se impone y determina, in modo impositivo, los procesos históricos, sociales, humanos. La nueva «Cosmopolis» es heredera del universalismo iluminista y humanista, pero su cuerpo orgánico está objetivado en los canales comunicacionales que la ciencia y la tecnología han vuelto posibles. Tratase de un nuevo orden que reconstruye la comunidad perdida sobre las bases del individualismo societario moderno, conectando superiormente dos universos que históricamente siempre han mantenido una efectiva tendencia a la recíproca anulación: la comunidad y el individuo. Pero en la nueva comunidad ni el conjunto anula la parte ni la parte tiene la tendencia a sobreponerse al conjunto: no es posible pensar a uno sin pensar al otro. Con una novedad: la presencia constituyente del individuo en esta comunidad la proyecta en la esfera física del espacio territorial, induciendo un nuevo tipo de sociabilidad más exigente que conyuga las expectativas individuales con las afinidades colectivas o comunitarias. En síntesis: entre un individuo físicamente determinado, pero cosmopoliticamente conectado, y una comunidad global sin aparente referente físico o espacial se interpone un nuevo espacio público más exigente, capaz de constituirse como retaguardia de soporte del individuo que piensa y actúa globalmente, pero que, en cada momento, vive localmente al ritmo de su propia dimensión orgánica.
I. Seis propostas
A formulação exacta da nova «Cosmopolis» não é simples. Mesmo com a ajuda do belíssimo texto de Italo Calvino, «Lições americanas. Seis Propostas para o próximo milénio» (1988), e das categorias que exaltam aquela dimensão mais humana do ser social: a leveza, a rapidez, a multiplicidade, a exactidão, a visibilidade, a consistência. Não sei até que ponto esta última poderia ser a que invocaria para desenvolver esta nova proposta. Porque a consistência parece ser aquilo que de mais precioso falta na nova comunidade virtual da rede. No sentido de uma sua necessária remissão ao espaço físico e às mil fronteiras que o delimitam.
Por outro lado, a natureza realista de um pensamento que se queira operacional e que procure situar-nos no real com vista ao seu reconhecimento, à sua gestão e à sua transformação, torna mais difícil a crítica radical, a inovação arrojada e o projecto estratégico. É por isso que estas categorias (a crítica, a inovação e o projecto), quando estruturam um novo pensamento, tendem normalmente a projectar-se mais na área da utopia, naquela área que tende a repudiar compromissos com a realidade. Por outro lado, o pensamento conservador, quando projecta reformas, fá-lo mais por necessidade de afirmação da diferença ou de recomposição de um «status» em declínio do que como resultado de uma projecção inovadora sobre a sociedade. Porque a sua vocação matricial não é inovar, mas gerir poderes, processos e relações instalados na sociedade, dar-lhes espaço de manobra e de afirmação. O pensamento progressista, quando se instala no poder, defronta-se normalmente com a poderosa resistência dos interesses corporativos e muitas vezes não age por receio de contrariar a lógica do máximo consenso possível para uma gestão o mais indolor possível da mudança. Com efeito, o decisionismo, muitas vezes identificado com uma esquerda mais decidida, tem uma conotação autoritária demasiado forte. Por outro lado, as políticas de longo curso parece não poderem induzir consensos imediatos para a acção. E, de qualquer modo, falta um diagnóstico preciso sobre as grandes fracturas estruturais que hoje atravessam as sociedades modernas. Daquelas fracturas que combinam excesso de economismo com defeito de política, excesso de imagem com defeito de conteúdo, excesso de interesses privados com defeito de valores públicos, excesso de retórica com defeito de práxis. E que, por isso, provocam desequilíbrios estruturais graves para o funcionamento equilibrado dos sistemas político-sociais.
Uma reflexão crítica sobre o momento actual leva-nos a algumas conclusões sobre a necessidade de inverter tendências de fundo que têm vindo a provocar graves disfunções no funcionamento da democracia. Refiro-as, desde já, de forma muito sintética.
Em primeiro lugar, é necessário promover a centralidade relativa da política desacelerando a tendência a reduzir todos os problemas sociais às suas dimensões puramente técnica e económica. Entre a apologia acrítica do discurso legitimador da emancipação e a apologia da «performatividade» do saber como único critério de aferição da sua validade, podemos muito bem encontrar uma posição intermédia entre emancipação e pragmática, devolvendo centralidade relativa a uma política que se destine à produção de bens públicos essenciais, enquanto se deixa um amplo espaço à criatividade privada para a produção de bens transaccionáveis, fonte incontornável da própria riqueza pública (impostos e exportações). Em segundo lugar, torna-se também necessário subtrair a política ao abraço mortal do sistema mediático, favorecendo todas as tendências que possam levar a uma drástica redução do poder discricionário daquele sistema, obrigando-o, ao mesmo tempo, a respeitar os «códigos éticos» e a sua função de mediação imparcial. Neste aspecto, a emergência da Rede pode vir a fazer realmente a diferença, uma vez que ela rompeu com o monopólio da gestão mediática do espaço público (gatekeeping). Em terceiro lugar, deve-se promover, por todos os meios, uma cidadania activa, contra a crescente tendência à homogeneização das mentes, dos gostos e dos estilos de vida e à «hipercomercialização da nossa cultura mediática» (McChesney, 1999). Ou seja: uma cidadania activa que ponha no centro do processo o indivíduo singular e as suas expectativas. Em quarto lugar, há que instruir o cidadão acerca das ilusões do novo-riquismo tecnológico e do consumismo frenético do infotainment electrónico, convencido que está de que a tecnologia é capaz de, por si própria, gerar automaticamente conteúdos e, assim, poder social. Em quinto lugar, trata-se de devolver ao cidadão global âncoras comunitárias reais, para que não fique pendurado exclusivamente nos mil fios invisíveis da nova e poderosíssima cultura electrónica e para que redescubra uma nova e mais rica sociabilidade de matriz comunitária. Em sexto lugar, é necessário produzir e promover cultura ao vivo, em vez de fomentar a cultura simulacral.
Tudo isto deve ser tarefa de uma nova cultura social e de uma política revitalizada. Mas tudo isto é impossível sem uma fenomenologia crítica do existente e das tendências que se começam a impor para além da vontade consciente dos cidadãos.
A estas propostas correspondem as verdadeiras fracturas que desequilibram o sistema: desvalorização da instância política e sobrevalorização da instância económica, no sentido da sobreposição da lógica privada (no espaço próprio de criação de riqueza através de bens transaccionáveis) à lógica pública (espaço próprio para a gestão e administração de bens públicos), de resto, ela própria paradoxalmente favorecida pelos defensores mais radicais do exclusivismo virtuoso da lógica pública; excesso de poder de um sistema, o mediático, que não possui mecanismos de legitimação para além do mercado, mas que funciona como se os tivesse; anemia política e social do cidadão global por via da confiscação mediática da representação política e dos efeitos perversos da sondocracia; ideologia tecnocrática ou a posse de tecnologia como afirmação de poder cultural; fragmentação dos sentimentos de pertença; cultura simulacral e nomadismo cultural.
São estas fracturas que explicam o insucesso das tentativas de reforma. As mesmas que impedem a política de agir com eficácia e substância. Porque o sistema está a funcionar de forma distorcida e porque o cidadão não se reconhece, conscientemente, nele, embora se submeta, inconscientemente, a ele. Há como que uma crise de legitimidade substancial do próprio sistema, provocando no cidadão fugas para o individualismo utilitarista ou para o intimismo melancólico. E para a descrença em relação a um sério funcionamento social do sistema. O sucesso popular do «voyeurismo» electrónico é efeito visível de tudo isto.
Os partidos perderam a alma e apostam cada vez mais o seu destino nos puros jogos de poder, julgando reencontrá-la cada vez que exibem um boa prestação televisiva. Vivem no interior de uma cultura do holofote, deixando na penumbra as verdadeiras questões.
II. Mudança de paradigma
Fala-se de novos paradigmas como se poderia falar de era da convergência. Ou da exigência de novas categorias para o milénio que começou há mais de uma década. Um milénio que nasceu sob o signo da comunicação. A convergência de que tanto se fala não se refere somente à poderosa convergência multimédia (computador + televisão + redes de comunicações), mas refere-se também a uma nova cultura e a novos estilos de vida, induzidos pela revolução na comunicação. Que, de resto, não começou ontem. Refere-se à difusão de novos comportamentos induzidos por uma nova cultura tecnológica - a «civilização da imagem» -, à emergência da sociedade da abundância informativa - a industrialização da comunicação -, ao triunfo do instantâneo e do directo - a televisão e a rede -, à mundialização das mensagens, ao self-service tecnológico, ao derrube das fronteiras, à automatização dos processos.
Trata-se de processos novos, iniciados há cinquenta anos com a revolução microelectrónica, que começam agora a implantar-se com maior precisão na esfera do real. Numa era em que o futuro já se pode desenhar em cenários virtuais.
As profundas transformações no universo da comunicação justificam que se possa falar numa mudança de paradigma. Do paradigma comunitário passou-se definitivamente para um paradigma cosmopolítico da comunicação, sendo o chamado momento societário um simples – ainda que longo - momento de transição. De transição porque, afinal, a cidade moderna nunca produziu verdadeiramente uma ruptura radical com a comunidade rural. A civilização industrial ainda manteve traços essenciais da cultura comunitária: nela persistiram o controlo social de base territorial, fronteiras territoriais claramente perceptíveis, centros aglutinadores da geografia citadina, um espaço público territorial que estava configurado à medida da geometria urbana, grandes organizações ainda portadoras de sentido comunitário porque organizadas territorialmente em núcleos comunitários e permeadas de ideais sociais, os velhos sindicatos. De tudo isto, o que persiste está agora envolvido por mil fios invisíveis que ligam directamente os indivíduos independentemente das configurações urbanas concretas, da organização territorial. Fios que crescem à revelia do tecido físico urbano e que o envolvem como uma rede capilar invisível que não tem princípio, meio e fim. A comunicação prescinde agora da geografia urbana e dos seus lugares geométricos, tornando-se puramente relacional, sem suporte substancial. Sem contexto ou determinação espacial. A comunicação corre por fios invisíveis ligando sujeitos sem afinidades espaciais.
Reconstitui-se, assim, a remota comunidade perdida através da comunicação inorgânica, mas alterando profundamente a sua estrutura originária vital. A nova «comunidade» não tem território próprio, nem fronteiras visíveis. Gera-se e reproduz-se no interior de redes. O novo «homo communicans» prescinde da velha communitas, porque a isso é induzido e obrigado. Perde, por isso, as suas raízes originárias (communicare deriva de communis). Hoje, as comunidades subsistem como simples agregados sectoriais, especializados e finalizados a específicos objectivos. Por exemplo, as comunidades reunidas em torno do trabalho: o objectivo é definido instrumentalmente pela estratégia da produção e da venda, nada mais restando do espírito comunitário. Estas comunidades não são globais nem teleológicas. Nelas não se exprimem as várias componentes da existência social. Pelo contrário, é o indivíduo quem se constitui como centro de todos os cenários. Tudo aponta para ele. Tudo é feito à sua medida. E o que sobra é puramente residual. O novo sistema comunicacional está dirigido exclusivamente para ele. O velho megafone animador das massas perdeu sentido e direito de cidadania. A comunicação individualizou-se. As grandes massas são constituídas por indivíduos singulares, não por corpos orgânicos, são transversais, identificam-se em poucos denominadores comuns. A comunicação de massas dirige-se simultaneamente ao público em geral e a cada indivíduo singularmente entendido. Entrámos numa era pós-orgânica. Manuel Castells fala de «mass self-communication». Cada um de nós é interpelado singularmente por um discurso que tem pretensões de universalidade. O universal é gémeo do singular. E esta é uma lógica estranha à velha comunidade, que era aquela que não podia prescindir de um território e de um tempo comuns onde se exercia uma cidadania multifacetada e rica de conteúdos sociais. As comunidades, hoje, só ressuscitam se lhes puserem uma câmara de televisão em frente. Normalmente para protestarem contra os vários poderes constituídos. Quase sempre em nome de simples exigências materiais. Quase nunca em nome de vínculos existenciais colectivos ou de projectos culturais autónomos que lhes projectem a identidade. O protesto é, de qualquer modo, a única isca que atrai uma televisão cada vez mais em busca do negativo e do espectacular. Mas, afastada a telecâmara, cada um, de novo solitário, regressa a casa com a única esperança de se poder contemplar na televisão, como se o movimento comunitário não tivesse tido outro objectivo. A televisão ama o protesto, dá-lhe força, mas é ela própria que acaba por se tornar a protagonista principal. Sem televisão nada tem significado.
III. Cosmopolis
Diria que o moderno sistema comunicacional quando fala a todos tem a pretensão de estar, ao mesmo tempo, a interpelar cada um. É esta a lógica e o sentido da procura do grande centro pelas televisões generalistas: falar ao grande público sem deixar de interpelar cada um singularmente. Mas creio que esta é também a lógica da comunicação descentrada da Internet, já que ela visa uma comunicação em rede o mais vasta possível, interpelando sempre indivíduos singulares, mesmo quando dispara a busca automática de múltiplos destinatários. Castells, como disse, formalizou muito bem o conceito: «mass-self communication», «comunicação individual de massas». É este o sentido da cosmopolis de que se fala. Esta lógica é pós-comunitária: com ela procura-se ultrapassar fronteiras, sair para fora da comunidade territorial, regressando-se a ela já como «cidadão global», liberto dos vínculos comunitários e portador de imagens do mundo cosmopolíticas. Não se trata, pois, já de um verdadeiro regresso ao interior da comunidade, mas de uma espécie de justaposição, de convivência em perfeita autonomia recíproca. A comunidade representa tão-só uma espécie de lugar instrumental para a satisfação das necessidades básicas da existência corpórea, um simples espaço de sobrevivência.
A cosmopolis expande a lógica societária e rompe com a lógica comunitária tradicional. Esta mantém-se como lógica residual, mas resistente, visto que ela é estruturante do ser-em-sociedade. A lógica cosmopolítica funciona como uma «segunda natureza» que se vai sobrepondo à natureza e à sociedade. A lógica comunitária está mais próxima da natureza e mais longe da construção histórica temporal. Por isso, resiste, mas também por isso vai cedendo terreno à lógica cosmopolítica. O que subsiste é tão-só um espaço cosmopolítico, social e politicamente anémico, e fragmentos comunitários residuais, resistentes à lógica homologadora da cosmopolis. Dois universos sem pontos de contacto visíveis, ou mesmo antagonistas. A polémica em torno da globalização tem este sentido preciso.
O que se passa, verdadeiramente, é o seguinte: 1. a lógica comunitária fragmentou-se e deu lugar à lógica societária; 2. esta, por sua vez, expandiu-se e deu lugar à lógica cosmopolítica. Esta expansão provocou implosões internas e produziu, à maneira hegeliana, um efeito de superação, fragmentando e integrando. O que acontece é que a extrema expansão do sistema o leva a afastar-se do seu núcleo duro, a lógica comunitária, tornando-se extremamente volátil. Isso implica que o velho núcleo comunitário se fragmente cada vez mais em microcomunidades socialmente mais débeis e que a sua função aglutinadora originária seja substituída por uma nova função de tipo mais superestrutural. Na nova cosmopolis, de forma reactiva, tendem, pois, a formar-se microcomunidades resistentes às novas funções globalitárias.
O que pretendo dizer é que a nova cosmopolis global é favorável ao desenvolvimento de microcomunidades sectoriais, de natureza localista, mas também de natureza ético-política (os movimentos por causas), tendencialmente resistentes às novas funções globalitárias. É que elas pretendem exprimir a estrutura enquanto a nova função é essencialmente de tipo superestrutural. Uma função que inclui uma dimensão essencialmente económica (globalização) e uma dimensão essencialmente comunicacional (cosmopolitismo).
A função globalitária possui duas dimensões: a primeira é identificada com a expansão universal de um concentrado poder económico-financeiro; a segunda, com a lógica da comunicação global, da comunicação em rede, sem fronteiras, instantânea, «on line», aberta e circular. A primeira é dominantemente intensiva (as concentrações mundiais de natureza económico-financeira, incluídas as do sector mediático), a segunda é dominantemente extensiva (a expansão universal e capilar da comunicação). A função globalitária tende a homogeneizar os conteúdos e a tudo transformar em mercadoria. Incluída a própria informação. E para isso contribuem decisivamente as grandes concentrações de poder. Este «cosmopolitismo», induzido pela lógica globalitária, nasce assim a partir dos vértices dos poderes económico-financeiro e mediático. Para se afirmar democraticamente, o «cosmopolitismo» deveria partir das exigências concretas de vida, da base dos sistema sociais, como parece já estar a acontecer com a expansão da Rede, ao serviço do indivíduo singular. Assim não sendo, há que o considerar potencialmente perigoso para as próprias democracias nacionais. Só assim se explica a polémica em torno da globalização. Uma tendência originariamente virtuosa e progressista está a gerar contestações por parte dos sectores que mais deveriam apoiá-la. Estes sectores não recusam a cosmopolis, até porque eles próprios estão organizados de forma cosmopolita. Eles recusam-na porque surge como uma imposição unilateral, sem base de legitimação e sem eficazes e legítimos controlos políticos. O conceito de função globalitária serve assim apropriadamente para designar a unificação forçada daquilo que se mantém substancialmente diferente. Serve, pois, plenamente, uma estratégia crítica, embora o autêntico cosmopolitismo seja o legítimo herdeiro do iluminismo progressista. A construção progressiva de uma democracia europeia representa certamente esta herança, já que se funda num movimento ascensional que evolui para uma concreta forma de cosmopolitismo, bem radicado em exigências internas dos próprios Estados nacionais. Ela constitui, assim, exemplo virtuoso de um cosmopolitismo politicamente sustentado, bem diferente, pois, daquele «cosmopolitismo» que é tecnologicamente induzido ou da globalização económico-financeira. O verdadeiro cosmopolitismo é incompatível com o «colonialismo» tendencial das funções globalitárias. Mas, felizmente, parece que começa a emergir um novo cosmopolitismo de natureza reticular muito resistente à natureza impositiva das funções globalitárias, porque orgânico ou funcional a uma dinâmica ascendente da livre expressão das expectativas individuais!
IV. A era digital
A era digital inaugura um novo mundo. É a maturidade da revolução que começou com a microelectrónica. Aquela mesma que iniciou o processo de destroçamento de diversos agregados comunitários. O transistor individualizou a audição rádio, destroçou as comunidades territoriais de ouvintes, isolando-os, anulou o velho conceito de espaço territorial e destruiu fronteiras. Numa palavra, descomunitarizou a comunicação. A robótica industrial destroçou as grandes concentrações humanas da fábrica e criou grandes espaços humanamente desérticos, só frequentados por «condutores» isolados que controlam as cadeias de «robots». A televisão interpela indivíduos singulares, criando uma imensa «multidão solitária», e inaugura ela própria, a partir do seu ventre electrónico, um espaço sem fronteiras e um tempo sem profundidade. Com a Rede emerge um imenso «espaço intermédio» para onde tudo converge, qual agorà universal, sem fronteiras, sem tempo e sem corpo orgânico visível.
Os sectores fundamentais da sociedade correm atrás do digital. Da nova economia, ou economia da rede, ao sistema mediático, à política. Sofisticados sistemas electrónicos já se implantaram na esfera do real. Do computador ao telefone celular, à televisão digital, à Rede. Quando o real surge cada vez mais coberto por um imenso véu electrónico. E quando todos começamos a estar também envolvidos por esse véu, qual rede que nos captura e nos separa do real orgânico. O «novo mundo» emerge a partir daí. Por isso, é necessário interrogá-lo com dúvida metódica.
Tratar-se-á, então, de uma «gaiola electrónica», que sucede àquela «gaiola de aço» de que falava Max Weber? A velha «gaiola de aço», onde habitava o cidadão da primeira modernidade, abriu-se, mas para o deixar entrar numa nova e mais sofisticada gaiola, a novíssima «gaiola electrónica»? E, assim, tratar-se-á mais de um novo condicionamento existencial do que de uma nova esfera de liberdade? Renovando-se a velha questão da natureza da tecnologia: liberdade ou nova servidão? A redenção tecnológica não é uma nova forma de alienação? Tratar-se-á da consolidação do domínio daquilo a que Horkheimer chamava razão instrumental, agora aplicada ao sofisticado campo da comunicação? Poder-se-á falar de «alienação do estar em rede», como diz Dominique Wolton? Dos acorrentados da rede, daqueles que se «deixam acorrentar pelos mil fios invisíveis da comunicação» (Wolton, 2000: 183)? De uma comunicação que se industrializou e se hipercomercializou? Creio sinceramente que não.
A verdade é que o novo mundo representa um enorme progresso: abriu-se um imenso universo por onde o cidadão pode livremente circular. As tecnologias são poderosos instrumentos que podem ajudar o homem a libertar-se dos obstáculos e dos limites da vida natural e da própria vida social. E hoje são já tão sofisticadas que se constituem como extensões da própria capacidade intelectual do homem. Próteses tão sofisticadas que já deram origem a utopias negativas, onde as máquinas chegam a autonomizar-se totalmente do homem, acabando por agir contra ele e por substituir-se-lhe. Este poder das tecnologias produz, todavia, um perigoso efeito secundário: a ideologia tecnocrática. A ilusão de que a tecnologia é a chave da evolução da sociedade. A ilusão de que a acção humana se está a tornar cada vez mais residual. De que, tendo meios tão sofisticados e poderosos, os fins se tornam infinitos. Ou de que, agora, são os próprios meios autopoiéticos que geram os fins.
Mas, tratando-se, na era digital, do império de uma lógica numérica, que, enquanto tal, não gera espontaneamente conteúdos, a questão reside em saber que conteúdos se introduz neste sofisticado sistema que está a emergir, que fazer com o sistema para o pôr eficazmente ao serviço da democracia e do homem, relançando as «grandes narrações» de que a Humanidade tanto precisa, como demonstram a força e a perenidade das grandes religiões.
As tecnologias sofisticadas invadiram o quotidiano dos cidadãos. Aparentemente tornaram-no mais livre: pode-se comunicar o que se quiser e quase sem limites. Só que, estruturalmente, se trata de uma comunicação muito especial: comunica-se, mas fora do contexto comunitário originário. Uma comunicação que implica a suspensão das tradicionais formas de comunicação comunitária, de base territorial. Que exige uma prévia solidão. Por exemplo, a televisão digital e interactiva não acaba com o resto daquela sociabilidade débil que a televisão analógica ainda gerava? Tratando-se de uma televisão interactiva o seu uso individualiza-se necessariamente. Sobretudo com a «mobile TV». Como acontece com o computador, embora de forma não tão radical. A palavra de ordem passará a ser: «uma televisão, um cidadão». Ou melhor, um telemóvel: um telefone, uma máquina fotográfica, um gravador, um rádio, uma televisão, um computador. Esta lógica aprofunda-se com a Rede. É a lógica radical da convergência e do digital.
O contexto de vizinhança territorial, que a comunicação tradicional pressupõe, dá, por isso, lugar à ausência de contexto, numa comunicação que prescinde do espaço e do próprio tempo. Comunica-se instantaneamente a partir de um qualquer lugar para outro qualquer lugar, sem que as variáveis espaço e tempo desempenhem uma qualquer função. Trata-se, com efeito, de uma descomunitarização da comunicação, por mais que se fale em «redes sociais». Lá onde a comunidade deixa de ser condição prévia para se tornar pura consequência da comunicação. Deixa de ser substancial para passar a ser puramente funcional. As comunidades da rede são comunidades virtuais: só se tornam efectivas quando a comunicação está em acto. Sendo comunidades puramente comunicacionais e abstractas. A comunicação circula na rede, não reside num lugar fixo, pode expandir-se simultaneamente em várias direcções em busca automática de destinatários. Foi isso que aconteceu com o célebre e terrível vírus «I Love You». São comunidades virtualmente universais.
Tudo isto foi possível através do aperfeiçoamento da chamada razão instrumental. A comunicação adquiriu uma velocidade que não tinha, desenvolveu-se para além do espaço e do tempo, prescindiu de uma comunidade fisicamente instituída, alterou a natureza do sujeito comunicativo, mudou, ela própria, de natureza. Esta comunidade comunicativa pouco tem de comum com a comunidade originária. Por exemplo, o silêncio não é uma categoria constitutiva da primeira, mas sim uma disfunção, um curto-circuito na comunicação, uma avaria, uma interrupção técnica. Em televisão, o silêncio constitui uma falha técnica grave na comunicação, uma paragem lá onde a velocidade é uma das categorias estruturantes do próprio meio. Ele é aí transformado em falha técnica porque o silêncio é um acto total, que envolve todos os sentidos e não prescinde de um contexto pleno de significado.
Os modernos instrumentos comunicacionais alteraram a natureza da comunicação, tendendo a reduzi-la à lógica do seu próprio funcionamento. A força dos meios tecnológicos de comunicação produz necessariamente uma redução drástica no sentido da comunicação total. Evolui-se para a comunicação electrónica e debilita-se a comunicação orgânica. Quanto mais se evolui para a primeira mais se regride na segunda. O exemplo da televisão é elucidativo: ela interpõe-se cada vez mais na comunicação intersubjectiva, substituindo-se-lhe. Trata-se de uma comunicação mediada e unilateral que projecta universalidade e eficácia em linguagens que, de outro modo, se inscreveriam num registo subjectivo, intersubjectivo ou comunitário. Comunicação que também altera o próprio registo expressivo do discurso, dada a natureza da linguagem televisiva.
V. Tecnologia e neutralidade
O que parece ser claro é que as novas tecnologias não são neutras em relação às formas e aos conteúdos comunicacionais. Não possuindo, por isso, uma natureza meramente instrumental, já que alteram profundamente o próprio registo da comunicação. Com efeito, elas possuem uma natureza própria, categorias funcionais que determinam em grande medida formas e conteúdos da comunicação. Com consequências profundas para a própria sociabilidade. As novas tecnologias possuem, neste campo da comunicação, um poder constituinte tão grande que deixam bem longe essa ideia de que são meros instrumentos neutros ou meios que podem ser postos ao serviço dos verdadeiros fins sociais para que foram criadas. Elas alteram profundamente o aparelho cognitivo do homem, funcionando como suas próteses, imprimem um novo sentido à própria ideia de comunicação e provocam profundas alterações comportamentais nos indivíduos, chegando mesmo a alterar a sua geografia situacional. Que efeitos desestruturadores na comunicação e na própria sociabilidade tem vindo a produzir o uso desregulado dos telemóveis nos espaços comunitários tradicionais, ferindo constantemente as regras mais elementares da convivência e da comunicação! Uso transformado em abuso permanente... até ao momento em que passe a ser, nos espaços comunitários, sujeito a uma sinalética especial semelhante à que se usa para fumadores: «proibido o uso de telemóveis». De resto, em todos os espectáculos artísticos já se pede sistematicamente aos espectadores que desliguem os telemóveis, para que não interfiram na comunicação estética. O telemóvel já funciona como instrumento de controlo: dos filhos, dos maridos, das esposas, dos namorados, dos empregados. O controlo pode alargar-se: a vida dos cidadãos pode ficar sujeita a um controlo permanente pelos sofisticados meios de que dispõem os vários poderes. Cada telefonema feito revela a posição geográfica e o comportamento do cidadão que o fez. Se a este controlo juntarmos o das movimentações electrónicas das contas ou a chamada «via verde», não ficaremos longe daquele Big Brother de que falava Orwell. A polémica sobre o Echelon, parecendo que já ficou longe no tempo, afinal, está para durar, ainda que com outros nomes.
A comunicação via Internet, sujeita cada vez mais aos efeitos destruidores dos sofisticados vírus que inundam a rede, exige mecanismos de controlo equivalentes aos que se usa para as relações sexuais: não concretizamos as relações ou, então, usamos sofisticados preservativos electrónicos. Ainda assim insuficientes para impedirem a ameaça constante de devastação dos softwares. Sendo o meio mais seguro não abrir o «attach». Isto é, a recusa de qualquer contacto comunicacional com quem não se conhece. O que significa passar a usar a rede com critérios que são exteriores e opostos à própria lógica da rede. O que significa também limitar-lhe profundamente o uso e contrariar a sua vocação originária. Trata-se aqui de fazer intervir critérios externos de selecção social da comunicação através da rede. Por sua vez, a comunicação via televisão possui características muito especiais e produz efeitos constituintes directos sobre o aparelho sensorial e perceptivo do espectador, como, por exemplo, o efeito de dilatação dos espaços, além de se dirigir mais à emoção do que à razão e de funcionar num ritmo cuja intensidade diverge radicalmente da velocidade com que se processa a generalidade dos fenómenos orgânicos.
VI. Uma multidão solitária
A importância do sistema comunicacional nas sociedades de hoje é tal que elas passaram a ser designadas por «sociedades da informação», «sociedades do conhecimento» ou «sociedades da comunicação». Este sistema é tanto mais eficaz quanto as sociedades modernas tendem cada vez mais a aprofundar o isolamento, o atomismo social, a solidão física. São sociedades onde domina uma «solidão múltipla» ou uma «multidão solitária». É, pois, natural que o sistema tenda cada vez mais a constituir-se como uma «segunda natureza» substitutiva, uma natureza artificial que se sobrepõe, como um manto electrónico, às comunidades reais.
Trata-se de um sistema difuso, já quase capilar, porque presente, de um modo ou de outro, em todas as casas. E que nos induz a prescindirmos cada vez mais das comunidades reais ou, pelo menos, de actos comunitários reais. Aprofundando a solidão física.
Naturalmente que se trata também de um enorme progresso que pode ser convertido em benefício comunitário. Em primeiro lugar, se as tecnologias forem vistas como instrumentos de superação dos limites biológicos do homem e como eficazes respostas às exigências progressivas do conhecimento. Em segundo lugar, como instrumentos que nos permitem um extraordinário aumento da produtividade do trabalho com a consequente contrapartida do aumento do tempo de lazer. Em terceiro lugar, se nos permitirem completar cosmopoliticamente a nossa limitada existência comunitária local. Isto é, se as conquistas tecnológicas forem concebidas como simples projecções das capacidades originárias do homem, ficando subordinadas a uma efectiva finalidade social. Sendo, pois, entendidas como meio para a expansão e o aprofundamento do mundo da vida, em vez de serem assumidas como fim em si, como milagrosas panaceias capazes de se substituírem ao pulsar da vida real.
É aqui que reside o perigo. O poder tecnológico dos modernos sistemas de comunicação é tão grande que pode fagocitar toda a capacidade humana de representação da experiência directa e dar-nos permanentemente versões programadas e revistas do real que flui mesmo ali ao nosso lado. Dar-nos tanto, ao mesmo tempo, que não resta espaço para a experiência e a reflexão directas sobre o real. De resto, as sociedades modernas estão cada vez mais sinalizadas, são cada vez mais abstractas e, por isso, apelam cada vez mais à mediação interpretativa do real.
Uma vasta sinalética torna-se, pois, necessária para viajar num mundo cada vez mais abstracto que já transformou o universo da informação num enorme sistema de produção industrial. Que transformou a informação em mercadoria e que por isso precisa cada vez mais de catálogos que orientem o cidadão nas aquisições e que lhe permitam uma cómoda e simplificada descodificação de um real cada vez mais complexo. A publicidade cumpre esse papel, mas ela é, como se sabe, interesseira. Tende a orientar o mercado. Mas o sistema também dispõe de mediadores especializados. Os chamados «banqueiros simbólicos», aqueles que, sendo depositários privilegiados de valores simbólicos circulantes, e seus intérpretes, têm a função de orientar as escolhas, emitindo juízos de valor sobre todo o universo dos bens disponíveis no mercado. Eles distribuem-se por várias categorias: jornalistas, editorialistas, comentaristas, críticos, infotainers, etc., etc.. Eles vivem exclusivamente nos interfaces da comunicação e interpretam para todos nós a vida social, a economia, a política, a cultura e seleccionam, hierarquizam e avaliam a importância de factos e eventos de todos os tipos. São «banqueiros simbólicos» porque se constituem como fiéis depositários da riqueza simbólica que circula, emprestando-nos, a baixo preço - por exemplo, pelo preço de um jornal -, o seu saber acumulado, para que nós o possamos investir na descodificação das informações que nos vão chegando sobre o que se passa no mundo. Os antigos «maîtres à penser» criavam e difundiam mundividências, os novos «banqueiros simbólicos» dão-nos códigos de acesso ao universo simbólico circulante. Destes, o mais ridículo e o mais abundante é o chamado «prêt à penser», sempre pronto a dar receitas sobre tudo. Especialista em generalidades. Com um vastíssimo mercado à sua frente, vista a necessária mediação interpretativa do real. Mas, porque de mercado se trata, aqueles correm o risco de se tornar cada vez mais banqueiros e cada vez menos simbólicos, já que a lógica do «prêt à penser» não pode deixar de ser a mesma que se exprime comercialmente no «prêt à porter».
Mas antes dos mediadores estão os próprios meios: a tecnologia como primeira instância de mediação. Mesmo quando tudo parece evoluir para uma lógica do directo, do «on line»: uma mediação que, por isso mesmo, parece ser anulada quando a tecnologia é assumida como simples instrumento neutral para uma eficaz reapresentação do real - a televisão - ou para simples interacções directas, sem aparente mediação - a rede.
A tecnologia oferece-se, num primeiro momento, como mediação minimalista da vida em directo. A verdade é que sempre de mediação se trata: mais tecnológica, nuns casos, mais substancial, noutros. A mediação televisiva, por exemplo, tem diversos momentos: o momento tecnológico, o momento selectivo, a hierarquização na apresentação, o tempo de apresentação, a força cromática, a repetição. Na Internet domina, sobretudo, o momento tecnológico e, em via subordinada, o sistema de organização na disponibilização das informações. Mas, mais importante do que tudo o resto, na Rede podem-se exprimir, à escala universal, protagonismos individuais que antes não eram possíveis sem a mediação dos famosos «gatekeepers», dos guardiões do espaço público.
Ora, vista a imensidão de informações que nos chega por via tecnológica, torna-se, com efeito, cada vez mais necessário procurar bússolas ideais capazes de nos guiarem na descodificação e na hierarquização da informação, melhorando a qualidade da mediação selectiva e interpretativa. Oferecem, então, os meios tecnológicos qualidade suficiente na sua função mediadora? Se pensarmos nesse terminal qualificado do sistema mediático que é a televisão verificaremos que os fragmentos de real que nos vai sistematicamente apresentando em velocidade estonteante e em quantidades cada vez maiores são exactamente o contrário daquilo de que o cidadão necessita. Constata-se, de facto, que ela tende cada vez mais a inverter a escala dos valores informativos, dando relevo ao secundário, desde que emocional e espectacular, e subalternizando o essencial, em nome da sua lógica interna. Diz Lawrence Grossman: «o jornalismo está a tornar-se num deserto cada vez mais vasto e inculto, que deixa cair tudo o que não é ficção, sem distinguir entre notícias insignificantes, crimes, sexo e mexericos escandalosos. Um jornalismo que se concentra quase exclusivamente nos erros do governo e naquilo que ele não deveria fazer em vez de se concentrar nos serviços essenciais que ele fornece. Os meios de comunicação contribuem enormemente para o crescente cinismo do público, para o seu afastamento da política e para a desconfiança em relação ao governo» (Grossman, 1999). A qualquer governo, acrescentaria eu. O tão discutido serviço público de televisão cumpre a sua função essencial? É possível desenvolver um serviço público de Internet? Sob que formas? A forma do e-government, por exemplo? É verdade, o Estado já faculta serviços essenciais ao cidadão através da Rede, libertando-lhe tempo de vida e promovendo uma cidadania mais activa. Ou a Internet tenderá cada vez mais a tornar-se um espaço comercial, acontecendo-lhe o mesmo que aconteceu às televisões, isto é, uma «hipercomercialização»? Os «banqueiros simbólicos» cumprem a sua função? A mediação, de tão complexa, insistente, abundante, múltipla e sem controlo fiável não corre o risco de se transformar em confiscação de direitos imediatos, em substituto simbólico da experiência e da reflexão, especialmente num sistema tão poderoso e insidioso como o sistema mediático? Um sistema que se prepara para pensar por todos nós, dando-nos enlatados sobre tudo e para todos os gostos! Quando, então, parece que aumentam as oportunidades o que se verifica é que se atrofia as liberdades.
Do que pretendo falar é desse bombardeamento persistente e caótico com que o sistema nos atinge permanentemente e que nos torna incapazes de reagir de forma reflexiva. Numa palavra, o excesso de informação pode matar. Sobretudo se ela for fornecida em abundantes e permanentes condensados audiovisuais. Mas também é verdade que hoje a Rede já está em condições de promover espaços de liberdade que antes não existiam, sem dúvida, ainda que, para retirar dela essa imensidão de informações que alberga, seja necessária não só literacia informática, mas também, ou sobretudo, saber analítico suficiente para seleccionar a informação, ter acesso linguístico a ela e capacidade de a descodificar, dispondo, naturalmente de tempo e de dinheiro para tudo isto! Diria, mais, com Castells: a rede induz uma cidadania mais exigente, não só do ponto de vista cognitivo, mas também do ponto de vista ético.
VII. Esquizofrenia
Estamos perante uma viragem mundial. Com poderosos efeitos sobre a própria vida democrática, os sistemas políticos, os sistemas eleitorais, os partidos. Sobre a política.
Das duas uma: ou os novos sistemas são assumidos como componentes essenciais da democracia e são, consequentemente, postos ao seu serviço, ou, então, são assumidos como novas peças do sistema capitalista sem efectiva reconversão social. A aplicação da micro-electrónica ao sistema industrial veio aumentar a produtividade, mas, em vez de reduzir drasticamente o tempo médio de trabalho, aumentou o desemprego. A Internet pode deslocalizar os centros de produção e de gestão, mas isso pode ser feito à custa de emprego em países onde as garantias sociais sejam mais fortes. A televisão poderia ser instrumento útil de comunicação, mas tem evoluído para instrumento de alienação e de gestão emocional do público. A globalização tem raízes no cosmopolitismo iluminista e no universalismo, mas ao que assistimos é à concentração mundial de capitais sem qualquer controlo democrático, ou seja, sem possível remissão para instâncias concretas de legitimação. Com todas as consequências que estamos a sofrer. A globalização evolui a grande velocidade, enquanto os Estados-Nação perdem poderes sem contrapartidas políticas a nível mundial. Corre-se assim o risco de se ver o poder global crescer ao mesmo tempo que desaparecem as instâncias de controlo democrático desse mesmo poder. Crescem gigantes e proliferam anões. Cresce o poder económico global e atrofia-se o poder do cidadão singular.
O «cidadão global», por sua vez, vive num concreto espaço territorial e a sua mobilidade não é comparável à mobilidade do dinheiro, das mercadorias e das ideias. Ele necessita de um espaço comunitário para dar corpo às suas exigências existenciais. Pensa globalmente, age globalmente, mas não pode também deixar de agir localmente, na precisa medida da sua própria dimensão orgânica. O que lhe pode faltar, verdadeiramente, são mecanismos locais capazes de enquadrar e de dar curso às suas exigências cosmopolitas. O seu espaço vital não estar configurado à medida das novas exigências de universalidade. Essa universalidade corre, pois, o risco de ser meramente virtual e de colocar o cidadão numa dualidade verdadeiramente esquizofrénica. De ser uma universalidade importada do exterior, em vez de ser construída a partir das suas próprias exigências. Por outro lado, a cosmopolis, fruto da imposição cada vez mais intensa das funções globalitárias, parece evoluir mais para uma concentrada economia mundial, incluída a chamada nova economia, do que para uma verdadeira comunidade política mundial, quando à concentração económico-financeira não corresponde uma verdadeira instância política decisora e nem sequer um espaço discursivo cosmopolítico capaz de resistir à lógica globalitária das grandes organizações.
Reemerge, pois, a questão da legitimidade. E a questão sobre os lugares onde se exerce essa mesma legitimidade.
VIII. Movimentismo
É evidente que nesta cosmopolis têm vindo a crescer os movimentos por causas. Esses mesmos movimentos que se desenvolvem por oposição à globalização e que tendem a centrar-se em causas sectoriais bem radicadas em expectativas e preocupações concretas dos cidadãos. E crescem tanto mais quanto maior é a crise das forças políticas tradicionais, desses organismos que deveriam ser portadores de visões integradas e construtivas do mundo. Os movimentos representam bem essa resistência da sociedade à homogeneização universal, ao cosmopolitismo abstracto e acrítico, à retórica dos grandes princípios universalistas que sempre acompanha um pragmatismo empirista e amoral. Estes movimentos são sectoriais, mas movem-se à escala cosmopolita, agindo segundo o mesmo registo universal dos poderes supranacionais. Eles são já expressão política do novo cosmopolitismo, ao contrário dos movimentos de pendor localista, que não ultrapassam o nível puramente reactivo. Eles são, provavelmente, embriões de novas formas de autêntica organização cosmopolita. Aqui se verifica a função social de movimentos que, nascendo sob um registo utópico, podem transformar-se em úteis embriões de um cosmopolitismo política e socialmente sustentado. Há que olhar com atenção para as funções performativas das chamadas redes sociais.
As formações políticas tradicionais, aderindo acriticamente a esse cosmopolitismo abstracto da comunicação electrónica, mas persistindo na defesa de interesses puramente corporativos, há muito que vêm correndo desesperadamente atrás do sistema mediático e que vêm transcurando as causas ideais, aquelas que poderiam manter os seus corpos orgânicos coesos. Crescem tanto mais em retórica mediática quanto menos se empenham em procurar o cimento ideal que pode manter viva a sua ligação com a sociedade. Também é evidente que quanto mais estas formações definham mais crescem e se multiplicam os movimentos por causas, ocupando o espaço que aqueles deixam livre. Estes, não tendo corpo orgânico estruturado, nem vocação para o poder, têm as causas para agitar em frente de uma câmara de televisão, difundindo imagens do mundo ancoradas a problemas reais. O movimentismo, com a actual configuração do sistema mediático e, sobretudo, com a rede, tem, por isso, mais oportunidades para crescer do que as formações tradicionais. Ele adapta-se melhor, pela sua própria natureza, à natureza do sistema mediático, também ele organicamente vocacionado para o movimento, a velocidade, a rapidez da notícia e da imagem e para o espectáculo da «guerra de movimento» sempre presente nos ecrãs. Os partidos, por exemplo, não podendo comportar-se como os movimentos, não podem, todavia, ignorar a sua natureza e as razões da sua eficácia. Até porque estes já conseguiram introduzir nas agendas políticas convencionais causas que no seu início pareciam não poder ultrapassar o nível da simples utopia ou da simples retórica política. A ecologia e os direitos humanos são disso exemplos significativos. A Amnistia Internacional ou movimentos como Greenpeace também o são. E, agora, as Redes Sociais, meros espaços de confluência, mas canais de comunicação gigantescos, já começam a exprimir-se como espaços de movimento capazes de mobilizar milhões.
O movimentismo tem uma afinidade política congénita: o referendo. Porque este é, como ele, rápido e cirúrgico. E tem na sua natureza a matriz da democracia directa. É um mecanismo que pretende devolver ao povo aquilo que a representação lhe tirou. A expansão dos sistemas de comunicação digital pode vir a impulsionar um uso generalizado do instrumento referendário para uma política fragmentada em causas. Há já quem fale de e-democracia, de e-voto e, porque não?, de e-referendo. Evoluir-se-ia, assim, progressivamente para o chamado «directismo». Com a consequente perda de relevância do próprio sistema representativo. E com um reforço substancial do movimentismo. Mas esta evolução só se verificará se as formações políticas tradicionais continuarem a evoluir acriticamente, e contra natura, para a lógica exclusiva do movimentismo e da democracia em directo, sem cuidarem de alimentar idealmente o corpo orgânico que os liga substancialmente à sociedade civil, anulando a sua própria razão de existir. Se os movimentos podem ser úteis para uma revitalização da política, quando aliados a formações políticas renovadas, todavia, o modelo movimentista não pode transformar-se em modelo dos partidos e da própria democracia representativa. Tal como a política não se revitalizará se persistir em convergir para um sistema mediático que conjuga permanentemente populismo electrónico com nihilismo institucional, ou seja, se viver atormentada por uma crítica permanente das instituições da democracia, partidos e governos, por um justicialismo sem controlo nem legitimidade, como se o lugar da crítica fosse exterior ao próprio espaço institucional da democracia e pairasse assepticamente acima de interesses, de subjectivismos e da impura vida social. Tal como a política democrática não deve admitir uma «República dos juízes» também não deve permitir uma «República dos jornalistas» ou dos agentes orgânicos do sistema mediático. Porque se o permitir está a admitir a inutilidade do voto popular. Se oráculos não são admitidos para os políticos, apesar de legitimados pelo voto e supostos intérpretes do interesse geral, muito menos pode cruzar os braços quando se multiplicam os oráculos mediáticos. Não é por acaso que, normalmente, o populismo se coloca acima dos partidos e da própria política enquanto tal, assumindo muitas vezes a forma de movimentismo ético e de intérprete moral da indiferença política da gente comum. A expansão excessiva do espírito movimentista (social e electrónico) constitui uma magna questão, já que o sistema representativo e as suas instituições são vitais para a democracia, sobretudo após o fracasso das chamadas democracias directas.
O que quero sublinhar é o seguinte: a natureza dos modernos sistemas de comunicação parece suscitar cada vez mais uma evolução para este sistema de permanente referendo aos actos políticos dos diversos poderes. O sistema de sondagens aponta já nesta direcção. A política-espectáculo também. O regresso do movimentismo também. Os sistemas electrónicos de comunicação também, já que permitem decisões em tempo real. Não é por acaso que já se fala em democracia electrónica, em ciberdemocracia, em democracia televisiva. E enquanto tudo isto acontece, o partido político parece imóvel, quando a sua aparente velocidade mediática mais não é do que a outra face do seu declínio orgânico, da sua paralisia estrutural, da ruptura da sua composição comunitária originária.
IX. Um espaço público renovado
Nos novos tempos, confrontamo-nos com tendências contraditórias e uma enorme confusão de géneros, sobretudo entre os géneros político e mediático. São tempos altamente complexos e algo confusos: poderosos meios de emancipação da humanidade constituíram-se como instrumentos de alienação e de submissão. É por isso que se torna urgente reflectir com profundidade sobre os tempos que correm para que seja possível reconfigurar a democracia segundo novos padrões, impedindo que venha a ser arrastada por uma evolução descontrolada e perigosa do sistema. Até porque esta situação vive numa linha de fronteira extremamente perigosa, sendo fácil resvalar para formas de sub-reptício neo-autoritarismo, induzidas por sucessivos e deslizantes golpes de Estado mediáticos e tornadas possíveis por sofisticadas concentrações de meios de comunicação de massas. É claro que um sistema sustentado nestas premissas se torna difícil de governar. E, todavia, a força do sistema é de tal ordem que é sempre possível repropor electronicamente a velha máxima política do «panem et circenses». Pelo menos, de forma a manter uma confortável maioria de consensos passivos.
Se pensarmos nesta imensa «gaiola electrónica» que ameaça tornar-nos prisioneiros não é difícil reconhecer as ameaças, vista a dificuldade cada vez maior de superar a vertigem tecnológica. É que este sistema está em consonância com a estruturação moderna da sociedade, com o isolamento crescente dos cidadãos e com a necessidade que sentem de recuperar por novas vias a identidade comunitária que perderam. O sistema comunicacional responde directamente às exigências do atomismo social, fala ao cidadão isolado, preenche-lhe os vazios que lentamente se foram instalando nele. O sistema comunicacional moderno está concebido para este novo mundo, prescindindo, no essencial, da instância comunitária tradicional. Ou melhor, absorvendo-a num sistema que se torna cada vez mais universal. Como romper este círculo que apela à tal «solidão múltipla», de que falava Virilio?
Numa palavra, seria preciso devolver, em novas formas, a vida comunitária aos cidadãos, rompendo com a causa estrutural que deu tanta força a este sistema. Mas, para isso, seria necessário inaugurar uma nova política urbana, um novo conceito de espaço público. Seria necessário introduzir uma nova política para as cidades, recuperando para as comunidades novos espaços públicos que fossem socialmente mais sedutores do que o espaço público electrónico. Redesenhando novos espaços para o exercício de novas experiências de vida em comunidade. Reconstruindo as cidades em torno de núcleos centrais múltiplos que funcionassem como pólos aglutinadores de vida comunitária. Reconstruindo praças e ruas com vocação verdadeiramente popular. A reconstrução da vida citadina torna-se essencial para poder promover actividades de lazer e de cultura que possam interessar os cidadãos, retirando-os à solidão da cosmopolis artificial em que tendem cada vez mais a encerrar-se.
É este o único modo de subtrair o cidadão ao fascínio deste mundo virtual para o qual o remete o actual sistema comunicacional. A evolução na qualidade das habitações, cada vez mais acessíveis, juntamente com a disponibilidade das tecnologias tornam o permanente recolhimento caseiro cada vez mais apetecível e indispensável perante a frieza do tecido urbano que circunda o cidadão e a ausência de alternativas comunitárias para uma saudável vida social. A isto juntam-se, depois, as persistentes dificuldades financeiras devidas ao abuso de sistemas de crédito cada vez mais apelativos e sedutores, promovidos precisamente pelo sistema mediático. Um sistema que permanentemente fornece soluções de poupança a quem mais e mais consumir, numa espiral que retira cada vez mais ao cidadão o prazer da vida simples, empurrando-o para o frenesim da posse como fim último da existência. Este cidadão vive as suas grandes emoções entre um anúncio de televisão e uma compra no maior centro comercial da cidade. Todo o resto do tempo é gasto em exercícios de contabilidade doméstica criativa, não lhe restando, assim, tempo para conviver e para fruir da cidade. É como se a cidade, de repente, tivesse ficado vazia, vítima da sereia electrónica que sempre às mesmas horas (o chamado prime time) encanta o cidadão-prisioneiro. Mas uma política para as cidades não é possível se não se sair de uma política que se tornou serva do sistema mediático. Onde tudo é feito e desfeito a pensar nos minutos do telejornal televisivo. Onde o cidadão conheceu uma redução brutal da sua identidade ao ser transformado em simples telespectador ou consumidor. A moderna telemaquia em que se transformou a política perdeu, em virtude, no confronto com a velha logomaquia, também ela já pouco virtuosa. A telemaquia tudo determina, desenvolvendo-se no interior de um paradigma que se sustenta no binómio ecrã-telespectador.
X. Uma nova política
É um facto que todo o sistema está configurado para que o cidadão seja permanentemente interpelado como sujeito isolado, solitário, passivo. É claro que este sujeito é prisioneiro de um enorme tan-tan informativo planetário e fragmentário que obedece a uma lógica de tipo industrial. É claro que a robustez orgânica da sociedade civil só se verifica no plano económico, sem ter complemento na existência extralaborativa, desenvolvendo-se espontaneamente as comunidades orgânicas tão-só no plano do trabalho profissional. É claro que a cidade não produtiva se transformou num imenso deserto. É, por isso, claro que a política sem visão estratégica se limita a constatar e a agir em conformidade, num penoso realismo adaptativo. O novos tempos desafiam-nos a romper com o simulacro e a promover uma profunda reflexão sobre um destino desejável para as sociedades. Popper falou de sociedade aberta. Esta, todavia, é uma sociedade que apela cada vez mais à solidão egoísta, improdutiva e alienante. Apela com todos os instrumentos sofisticados que põe ao nosso dispor. E, todavia, estes instrumentos deveriam fomentar uma sociabilidade mais forte e saudável. Mas não há sociabilidade que resista a uma baixa de tensão ideal no exercício da política. Trata-se, pois, de dar à política o lugar que lhe pertence. De revitalizar as verdadeiras instâncias legitimadoras da acção política, relativizando o poder imenso que o sistema mediático ganhou. Porque é verdade que é este sistema que hoje dá e retira legitimidade às instâncias políticas, esvaziando permanentemente de sentido os mecanismos electivos, transformados em meros mecanismos processuais de designação de representantes. E provocando a lenta, mas inexorável, erosão do sistema representativo. A corporação mediática detém hoje um poder incalculável, sem possuir ao mesmo tempo instâncias legitimadoras e instâncias credíveis de controlo. A ideia de «cidadania activa» poderia ser a chave de resolução do problema, mas ela continua a ser uma simples ideia, já que o modelo que se impõe é o de «cidadania passiva», visto o funcionamento global do sistema mediático. Por outro lado, não é hoje visível um saudável e construtivo cruzamento entre partidos e movimentos por causas que poderia levar à promoção de uma «cidadania activa» robusta e capaz enfrentar e de limitar com sucesso o poder daquele sistema. Os movimentos, porque não são atingíveis pela síndroma do poder, poderiam, em aliança estratégica, defrontar esse poder incontrolado do sistema mediático, sem correrem o risco de virem a ser acusados de instrumentalismo político e de enviesados desígnios de controlo social. A menos que, também eles, por razões de afinidade política, se sintam bem confortados nos braços do sistema. Um sistema que, de resto, bem contribuiu para o seu próprio crescimento.
Políticas urbanas estruturantes que visassem a reposição do espaço público territorial também poderiam levar a que o cidadão deixasse de se refugiar no espaço público electrónico e na cultura simulacral que lhe é devolvida pelo pequeno ecrã. Um espaço público que não se reduzisse à exposição de mercadorias e que não apelasse ao consumismo real ou imaginário, mas que se estruturasse em torno de comunidades cultural e socialmente activas, poderia também quebrar a mística do cosmopolitismo de fachada electrónica. As catedrais do consumo não são, com efeito, lugares comunitários já que nelas o consumidor tem como interlocutor único a mercadoria exposta, numa relação de compra e venda alheia a qualquer comunicação intersubjectiva. Trata-se, também aí, de imensas multidões solitárias apenas interpeladas pela sugestão comercial. Estranhos que se cruzam e que só comungam do fetiche da mercadoria. Da televisão ao centro comercial: trata-se de um mesmo percurso em busca da mercadoria desejada. Ou a mercadoria como princípio e fim do processo social.
Do que falo é de outro universo. Falo do valor de uso. E do uso do valor. Da revalorização das instâncias comunitárias com valor moral. Porque são elas que nos conduzem ao centro da existência. Mas a verdade é que os próprios partidos há muito que prescindiram do valor da instância comunitária. Usando-a tão-só internamente, para fins instrumentais de construção do próprio sistema de poder.
Não será possível superar o lento descrédito da política enquanto se mantiver a corrida suicida para o pequeno ecrã e para os puros jogos de poder. Jogos que passam cada vez mais pelo uso instrumental do mesmo sistema mediático que tantas vezes acaba por determinar decisivamente os próprios jogos e os seus resultados. A corrida para o ecrã subalterniza a política. A luta pelas audiências a todo o custo e a qualquer preço mata o corpo orgânico dos partidos e transforma-os em apêndices do sistema mediático. O nivelamento do discurso político pela lógica televisiva conduz aos mesmos resultados a que está a conduzir a hipercomercialização da televisão. De resto, os partidos políticos têm vindo a comportar-se como as televisões generalistas comerciais: eles, como elas, correm atrás das grandes audiências porque são estas que dão poder, do mesmo modo que geram entradas publicitárias e dão lucro. Não importando como. O lucro em política são os consensos e estes obtêm-se nivelando os programas pelo gosto médio do cidadão-espectador: «dar às pessoas o que elas querem», individualmente consideradas, porque é para elas que o sistema está apontado. A política passa assim a falar a uma «multidão solitária», vazia de conteúdos político-ideais. Pelo sucesso de tantos programas televisivos bem se poderia medir o sucesso de tantas políticas e de tantos políticos. O leitor sabe ao que me estou a referir.
Assim fazendo, não é possível romper com este círculo vicioso de que tenho vindo a falar. Pelo contrário, ele tenderá a reforçar-se, não tardando, assim, a implantar-se a nova democracia electrónica. A mesma que poderá ser concebida para a tal «multidão solitária». E que prescinde de vez com a exigência de reposição de afinidades colectivas, de sentimentos de pertença, de espírito comunitário. Uma democracia que fala directamente ao cidadão solitário e a-social. Uma democracia substancialmente emotiva e que fala mais para a intimidade do que para a sociabilidade.
Esta democracia decorrerá na praça pública electrónica, funcionará por e-voto e discutirá na rede. Lá fora, a vida continuará a decorrer sem preocupações democráticas, uma vez que a democracia se discute electrónica e solitariamente em casa. Tudo o que lá fora for relevante para a democracia terá de passar necessariamente no terminal electrónico. O que não passar não conta. Trata-se de uma democracia algo esquizofrénica.
É a política-espectáculo, de que falava Guy Debord. Uma política que fala mais à emoção do que à razão. Mais aos olhos do que à mente. E que, por isso, gera uma passividade mortal para o exercício da cidadania. A democracia perde, assim, o próprio sentido e abre espaço para a afirmação de «caudillos» electrónicos dos mais variados tipos. Não tardará, pois, a surgir um novo Curzio Malaparte que nos proponha um novo manual sobre a melhor «técnica do golpe de Estado mediático», quando já vemos no terreno tantos aspirantes à função.
Referências bibliográficas.
1. Calvino, Italo, 1988, Lezioni americane, Milano, Garzanti.
2. Grossman, Lawrence, 1999 Caro McChesney, fermiamo il trash ma non così, in Reset, n.º 55, Roma.
3. McChesney, Robert, 1999 Se non è pubblica, che televisione è, in Reset, n.º 55, Roma.
4. Santos, João de Almeida, 2000 Homo Zappiens. O feitiço da televisão, Lisboa, Editorial Notícias.
5. Wolton, Dominique, 2000 E depois da Internet?, Lisboa, Difel.