sábado, 5 de outubro de 2013

A Política e a Rede: os casos italiano e chinês


«Senhor HU, deite abaixo este Grande Firewall!»
Hillary Clinton
«O nosso objectivo é mudar o mundo»
Eric Schmid, chefe executivo do Google

Procuro, neste ensaio[1], retirar consequências do novo modelo de comunicação digital do ponto de vista da emergência de um novo espaço público deliberativo, que nasceu com a rede, propondo, ao mesmo tempo, uma reflexão não só em torno da questão da democracia digital (no caso italiano), mas também em torno do problema da regulação dos fluxos informativos e comunicacionais neste espaço e das tentativas do seu controlo por parte dos poderes nacionais, em nome da sua soberania, mas em conflito aberto com a liberdade de informação e de comunicação inscrita no «espaço intermédio» reticular (caso chinês). Um problema que, afinal, não se põe só aos regimes autoritários, mas também às próprias democracias representativas. Um problema de regulação dos fluxos comunicacionais. Um problema, portanto, muito mais complexo do que o da liberdade digital no quadro de um regime autoritário.
Entro, deste modo, num tema que ganha cada vez mais importância nos dias que correm. A propósito do caso Google/China, alguém falou de um combate digital entre um David e um Golias. Outros dizem que só a consciência da própria força é que permitiu ao Google enfrentar abertamente o colosso chinês, em vez de negociar nos bastidores, como é próprio do mundo empresarial (Pisani, 2010: 27). Perspectiva que, de resto, parece hoje cada vez mais plausível visto o potencial do mercado chinês nesta – como noutras – área. A questão motivou uma intervenção de Hillary Clinton, exigindo publicamente respeito pela Web a nível global e defendendo a liberdade universal online. Com refere Timothy Garton Ash (2010: 27),  sem ser tão radical como Ronald Reagan - quando, dirigindo-se a Gorbatchov, disse, em Berlim, «Senhor Gorbatchov, deite abaixo este Muro» -, Hillary disse, de facto: «Senhor Hu, deite abaixo este Grande Firewall»! Sobretudo, o que está em questão, com a actualíssima questão chinesa (ou iraniana), é a relação entre a universalidade da Rede, a liberdade individual e as soberanias nacionais. Questão que se põe à China ou ao Irão, outro protagonista da censura digital, e, em geral, àqueles que eram considerados, pelos «Repórteres Sem Fronteiras» (Alandete, 2010: 32-33), como «os 12 inimigos da Internet» (Cuba, Egipto, Coreia do Norte, Síria, Tunísia, Arábia Saudita, Vietname, Myanmar, Turkemenistão e Uzbekistão, além da China e do Irão), mas que se põe também às democracias ocidentais. É claro que a verdadeira questão é a questão da liberdade de informação e comunicação, sobretudo quando, por um lado, estamos perante uma escala global e um acesso globalmente livre (em teoria) e, por outro, estamos perante sistemas políticos nacionais mais ou menos autoritários, tradicionalistas ou fundamentalistas, que não podem conviver com a livre circulação da informação, vertical ou horizontal que seja. E também é claro que não podemos falar somente em liberdade política, de opinião, de informação e de acesso ao conhecimento. Falamos também de entretenimento, de acesso a bens, de comércio, de negócio, de actividade económica. De uma realidade muito bem retratada por Don Tapscott, na estimulante Introdução ao livro de Juan Luís Cebrián, La Red:

«o mundo desenvolvido está a deixar de ser uma Economia Industrial baseada no aço, nos automóveis e nas estradas para se converter numa Economia Digital baseada no silício, nos computadores e na rede» (Cebrián, 2000: 20). 

Ou seja, falamos daquela transição que Nicholas Negroponte identificava, em «Being Digital», como passagem dos átomos aos bits (Negroponte, 1995: X). Mas falamos também da emergência de um universo que não está imune, bem pelo contrário, às práticas desviantes, como a pornografia infantil ou o terrorismo. Falamos, pois, do ponto de vista dos conteúdos, de mundividências, de estilos de vida, de informação e cultura, de economia, de política, de comunicação e de práticas reais, tudo conteúdos circulantes sob forma digital, mas com um impacto decisivo sobre países, grupos sociais e indivíduos singulares. É por isso que a questão não se põe só para os países governados por sistemas autoritários. Ela põe-se também para as democracias ocidentais, sujeitas como estão a desvios claramente incompatíveis com os grandes princípios por que se regem – desde a ciberpirataria até à pornografia ou à pedofilia difusas, ao terrorismo. Trata-se também aqui, afinal, da questão de uma regulação dos fluxos informativos e comunicacionais que circulam na rede universal, que não afecte, todavia, a liberdade responsável. A questão é, porém, bem mais complexa do que a que se põe aos meios de comunicação tradicionais, sabendo nós que, afinal, a própria regulação dos media tem sido tão sensível quão difícil e complexa, até quase à impraticabilidade. Porque a Rede tem uma dimensão global, tratando-se, ao mesmo tempo, de um sistema muito mais complexo, estruturado a partir de uma lógica relacional (a da relação «many-to-many», entre variáveis independentes), massificado, mas individualmente orientado, com diversas modulações de acesso, emissão, recepção e interacção e sem centros de comando equivalentes aos dos media tradicionais. Uma regulação, portanto, muito mais difícil e complexa. Além disso, neste mundo da globalização de processos e da comunicação continuam a manter-se as soberanias nacionais, as lógicas, os processos e as relações locais. E a própria natureza, por mais que se queira, ainda continua a caminhar com os ritmos implacáveis da sua própria e lenta temporalidade. De resto, alguém definiu esta coexistência com uma palavra de compromisso: glocal, ou seja, pensar global e agir local. E a questão também é esta: até que ponto a lógica global tenderá a colonizar a acção local? Ou, então: até que ponto a lógica local tende a reforçar-se e a criar mecanismos de defesa perante uma ameaça de colonização por parte de uma lógica global, exógena, externa? O problema, como se sabe, consiste em compatibilizar a preservação das identidades locais ou nacionais, a sua, digamos, soberania, com a assunção da lógica global, demarcando os planos em que se afirmam ambas. No fundo, é sempre a questão da relação entre sistema e indivíduo, entre universal e particular, lá onde é sempre indesejável que um subsuma o outro, sobretudo, aqui, onde desapareceram os mediadores. Foi por isso que se formulou essa ideia de traduzir o pensamento global na linguagem da identidade local: glocal. Mas a questão é incontornável: pode um Estado autoritário conviver com uma informação sem fronteiras - suportada, além disso, numa infra-estrutura global, como é a Rede -, mesmo que se trate de um despotismo iluminado? O que regressa sempre ao debate é a própria questão democrática. E, assim, a questão de um novo espaço público deliberativo que remete mais para o indivíduo singular do que para as grandes organizações. De resto, a questão da compatibilidade entre as identidades nacionais e uma cidadania universal (embora ele estivesse mais preocupado em fundamentar uma cidadania europeia) foi muito bem analisada e demonstrada por Habermas num excelente texto sobre «Cidadania e identidade nacional» (Habermas, 1991: 123-146). De qualquer modo, um novo espaço público deliberativo representará sempre a possibilidade de conversão decisional e institucional da deliberação pública, do que ocorre, sob forma pregnante, semanticamente intensa e virtualmente imperativa, no espaço público deliberativo.

O novo espaço público deliberativo e os seus inimigos

Castells identificou, em «Communication, Power and Counter-Power in the Network Society» (in «International Journal of Communication», Vol. 1, 2007), esta nova realidade da rede através do conceito de «mass self communication», de comunicação individual de massas. Conceito que até parece, à primeira vista, contraditório, já que a afirmação individual resiste à ideia de uma sua anulação nesse universo compacto das massas. Mas é por isso mesmo que ele é interessante, além de eficaz. Com efeito, quando se fala deste universo, na «mass self communication», fala-se na capacidade expansiva universal do sistema em rede, precisamente a partir de pólos individuais, mas múltiplos ao infinito. Lá onde o acesso é directo e sem mediações, mas onde, por isso mesmo, esta possibilidade de expansão está condicionada, à partida, pelas competências do próprio emissor individual, pela sua capacidade de produzir conteúdos consistentes e de os difundir no interior do sistema, pela sua genialidade e também pela sua capacidade de entrar no sistema dos media convencionais, ainda indispensáveis para uma boa difusão na própria rede. Trata-se, pois, de uma poderosa revolução que permite agir directamente no interior do espaço público como nunca antes acontecera. Um espaço público que, agora sim, pode ser considerado como um verdadeiro espaço público deliberativo. Mas é por isso mesmo que muitos – por exemplo, o próprio Castells - já começam a chamar a atenção para as manobras vastíssimas que se estão a verificar neste espaço, o da rede, não só através da sua ocupação, ou colonização, pelos media convencionais, no plano dos conteúdos e dos seus «agentes orgânicos», mas também internamente, por parte de grupos ou de países – como a China, com a sua «Grande Muralha de Fogo», ou seja, a censura online da República Popular - que temem que este se venha a transformar num perigoso espaço de contrapoder, ameaçador de uma ordem que não pode conviver com a liberdade própria deste novo espaço público deliberativo. Diz Castells: as elites dominantes vêem-se, assim, desafiadas por movimentos sociais, projectos de autonomia individual ou políticas insurreccionais que encontram um ambiente muito mais favorável nesse universo emergente da «mass self communication». Deste modo, ao que se assiste é a uma nova fase e a um novo modo de construção do poder no espaço de comunicação, quando os poderosos compreendem que é necessário responder ao desafio lançado pelos networks de comunicação horizontal. Que significa isto, diz ele? Significa ter necessidade de vigiar a Internet, como acontece nos USA, apesar de nem assim conseguirem evitar as constantes intrusões no seu sistema, designadamente por parte da China, tendo-se registado, só entre Janeiro e Junho de 2009, 43.785 casos de ciberpirataria, no que vem sendo uma subida exponencial desde 2000 (de 1415 para 87.570, em 2009) (Fonte: Reuter/La Repubblica); de controlar manualmente o correio electrónico, se não se dispuser de um robot em condições de o fazer com eficácia, como comprovado pelas últimas descobertas na China, onde, segundo Federico Rampini, 15.000 técnicos trabalham em permanência no controlo da informação, muitas vezes usando os mesmos métodos dos ciberpiratas; de tratar os utentes da Internet como piratas e vigaristas, como está abundantemente previsto na legislação da UE; de adquirir «sítios» da WEB de social networking, para controlar as suas comunidades; de adquirir as infraestruturas de rede para fazer discriminações nos direitos de acesso. Em suma, de recorrer a tantas tácticas de controlo e de delimitação daquele que é o mais recente modelo de espaço de comunicação. Isto diz Castells. E com isso ele quer dizer que esta grande revolução no espaço público começa agora, muito antes de ter despoletado a suas imensas e exponenciais capacidades, a conhecer ela própria a sua própria contra-revolução. Porque do que aqui se trata, de facto, não é ainda, infelizmente, da desejada regulação, mas de controlo, de censura e de ciberespionagem. Ou mesmo de desqualificação, por parte de personagens insuspeitos, como Finkielkraut ou Séguéla, que, num momento certamente menos feliz, ousaram considerar a Net como «poubelle de la démocratie» ou como «la plus grande saloperie jamais inventée» («Nouvel Observateur», Nov./Dez., 2009). Uma coisa é certa: o mundo não volta para trás e a natureza da Internet é tal que o controlo se torna cada vez mais difícil. E o que eu creio é que ela já nos trouxe mais coisas positivas do que negativas. E uma delas é a do poder que o indivíduo singular readquiriu, ao libertar-se desses intermediários («gatekeepers» do espaço público) que tendem sempre a transformar a própria mediação em princípio e fim do processo democrático. Como dizia Bill Gates: «a China, de qualquer modo, será melhor do que antes, graças a nós». Mas eu creio que não será só a China: será o mundo em geral.

A rede em ambiente autoritário: o caso chinês

O caso da China, de resto,  é um caso que importa analisar, uma vez que as autoridades de Pequim, sobretudo a partir do famoso discurso de Al Gore sobre a «construção da autoestrada da informação», têm vindo a dedicar atenção crescente à rede, uma vez que consideram as novas tecnologias como um meio idóneo para melhorar a vida dos cidadãos, embora não tanto para aprofundar o seu nível de participação política, ou seja, como um meio que há que manter fundamentalmente no plano económico (Qiu, 2011: 140). Em 2003, os internautas chineses eram mais de 59 milhões, para cerca de 21 milhões de computadores ligados à rede, constituindo a terceira maior rede mundial de internautas, depois dos EUA (165,2 milhões, em 2002) e do Japão (61,1 milhões, em 2002). Mas, em 2007, já havia 210 milhões de utilizadores de Internet na China, um número muito próximo daquele que os EUA exibiam nessa altura, 216 milhões. Um ano depois, em 2008,  segundo o CNNIC, o «Centro de Informação da Rede de Internet Chinesa», a China já dispunha de 253 milhões de utilizadores da Internet, o que o tornou no país com maior número de utilizadores do mundo (Castells, 2009: 370-371). O crescimento da rede é, na China, de facto, absolutamente exponencial. Com efeito, se em 2003 ele representava somente cerca de 4.5% da população, embora o ritmo de crescimento anual fosse absolutamente impressionante, 262% por ano, desde 1995 (data do início, quando existiam apenas 5 telefones por cada 100 habitantes) até 2003, em 2008, ele já representava cerca de 19,5% da população, com 253 milhões, e em 2012 (30.06) representava 40,1%, com cerca de 538 milhões de utilizadores, para uma população de 1.343.239.923 habitantes[2]. Mas a verdade é que, em 2003, os usuários ainda representavam, em boa medida, uma elite. Vejamos (dados de 2003): quando o rendimento per capita médio chinês era de cerca de 84 dólares, a média exibida pelos utilizadores de internet, entre 1997 e 2003, era de 164 dólares, quase o dobro; e quando a média chinesa geral de cidadãos com instrução superior correspondia a 3,6%, a média exibida pelos utilizadores de internet era de cerca de 72%. Ou seja, a Internet era ainda usada por uma elite: com dinheiro, com instrução superior, mas também com menos de trinta anos e masculina (Qiu, 2011: 143). Como contraprova, basta dizer que, correspondendo a população rural chinesa a 69% da população, somente um por cento era, nesta data, internauta. Outro dado interessante, para o nosso objectivo, é que 80% dos utilizadores visitavam, em 2003, páginas web nacionais, 13% páginas em chinês estrangeiras e só 6% liam conteúdos em línguas estrangeiras e em sítios web estrangeiros (Qiu, 2011: 144)[3]. Também estes dados dizem muito acerca das características dos utilizadores e das limitações com que os conteúdos circulavam na rede, facilitando, assim, a tarefa ao poder político instalado. Entretanto, a China  já contava, em 2000, com cerca de 1.250.000 Kms de fibra óptica. Hoje, tudo mudou, com essa massa imensa de utilizadores de uma tecnologia que, por mais controlos que haja, tem efectivamente um enorme potencial libertador, com o qual os poderes terão cada vez mais de se confrontar.
Diz Jack Linchuan Qiu, investigador da «Annenberg School for Communication» da Universidade da Califórnia do Sul e cofundador do «Grupo Electrónico de Investigação em Internet da China»:

«A idiossincrasia mais intrigante da Internet na China é que, apesar do potencial libertador da tecnologia, a sua alta velocidade de crescimento possa manter-se dentro do marco do sistema político actual dominado pelo partido comunista» (2011: 150).

E esta é mesmo a questão que aqui nos interessa. Como se explica a convivência feliz de uma tecnologia libertadora num país politicamente autoritário e, mais ainda, com o poder político a apostar nela, como negócio? Será suficiente toda a parafernália de dispositivos de controlo estatal sobre a rede? O desenvolvimento que ela induz não acabará por suscitar fortes exigências de liberdade política? Ou a rede poderá ser colonizada ideologicamente pelo poder político, por um lado, controlando os fluxos do ciberespaço, por outro, pilotando os conteúdos através da influência sobre as elites (incluída a económica), embora cada vez mais esse «espaço intermédio» se esteja a transformar num imenso espaço público acessível a todos? A censura sobre a internet pode assumir a forma mais suave de «regulação»? Ou os conteúdos que nela circularão poderão ser, por um lado, enquadrados por uma forte hegemonia político-cultural do partido comunista e, por outro, por indústrias culturais e estilos de vida politicamente inofensivos, induzidos pelo poder instalado?
O problema é complexo, até porque se uma parte do poder político - por exemplo, os tecnocratas do Ministério da Indústria da Informação (MII), defensores de uma aceleração do desenvolvimento com base tecnológica - aposta fortemente na rede, já o «Comité de Direcção do Conselho Estado para a Informatização»  (integrado por representantes do MII, mas também pelo Departamento de Propaganda do PCC, do Gabinete de Informação do Conselho Estatal, do Ministério da Segurança Pública, dos Serviços Secretos do Estado e do Exército de Libertação do Povo), a maior instância de decisão nacional sobre assuntos da rede, valoriza, mais do que a economia, a consolidação e a expansão do poder político chinês, logo, necessariamente o controlo apertado dos fluxos de informação. Assim sendo, é natural que o fluxo da rede esteja sujeito a normas de controlo muito apertadas, desde o início do processo (1996-1997):

(a) todo o tráfego internacional de Internet deverá passar por canais aprovados oficialmente;
(b) todos os fornecedores de serviços Internet deverão possuir uma licença; (c) todos os utilizadores de Internet deverão registar-se;
d) a «informação danosa, subversiva ou obscena» será proibida.

Outras iniciativas foram tomadas em nome da segurança na rede, emanadas das instituições encarregadas da segurança nacional (Ministério da Segurança Pública, Serviços Secretos, etc.). Em 2000, foram promulgados seis decretos reguladores relacionados com os segredos de Estado, com as operações comerciais on line, com os serviços de informação e de notícias e com a segurança na rede, visando sobretudo os fornecedores de conteúdos: licenças especiais, informações detalhadas sobre os utilizadores da rede, proibição de titularidade de acções por empresas estrangeiras nas empresas de fornecimento de conteúdos.
A «regulação» revelava, de facto, segundo Qiu, uma «cultura empresarial de censor» (Qiu, 2011: 151). Este sistema de «regulação» é garantido por inúmeros agentes ligados às forças de segurança. De resto, a China ficou conhecida pela famosa «Grande Muralha de Fogo» (Great Firewall), que bloqueia o acesso a informação considerada prejudicial, amplamente definida, talvez até cerca de 10% dos sítios da World Wide Web (Qiu, 2011: 152). Segundo Castells, «uma série de sítios web de todo o mundo, incluídos alguns dos principais meios de comunicação do ocidente, como o “New York Times”, estiveram bloqueados durante certos períodos e alguns dos sítios mais populares,  como o Youtube, estiveram encerrados na China em momentos críticos». Na verdade, só os sítios mais conhecidos estão bloqueados. A maioria dos sítios web, incluídos os dos principais meios de comunicação ocidentais, só estão bloqueados em períodos de tempo limitados (2011a: 372).  As instituições utilizam também tecnologias intranet e de rastreio avançadas, tal como programas para filtrar conteúdos, como o famoso «Projecto escudo dourado» (cuja criação foi confiada à CISCO), o sistema de bloqueio mais sofisticado do mundo. De facto, a partir de 2002 o processo de bloqueio sofisticou-se ainda mais e tornou-se mais agressivo. E a verdade é que quem se atrever a passar a linha vermelha marcada pelas autoridades arrisca-se a ter perturbações no seu terminal e a ir parar à prisão. Isto, como se compreende, cria dificuldades ao desenvolvimento e ao próprio investimento estrangeiro, que encontra uma rede agrilhoada, menos rápida, menos eficiente e menos livre. Mas se isto é verdade, também é verdade que, do ponto de vista interno, esta frenética e vasta actividade de controlo encontra os seus clientes, gerando postos de trabalho e boas oportunidades empresariais, no interior do quadro normativo definido pelo Estado.
E, todavia, este vasto sistema de controlo dos fluxos da rede chinesa não consegue controlar eficazmente os utilizadores individuais. Por exemplo, é possível usar a rede nos cibercafés, usando cartões online pré-pagos. Por outro lado, os utilizadores conseguem iludir os sistemas de vigilância utilizando uma linguagem menos directa, iludindo os sistemas automáticos de detecção. No seu estudo sobre a eficácia real do controlo da Internet na China, Fan Dong descobriu que, nos fóruns de internet sobre a China, os temas mais delicados (Falun Gong, Tiananmen) não eram tratados directamente em nenhum foro (Castells, 2011: 374). E também é claro que os movimentos mundiais não alinhados com a China dispõem de recursos de Internet capazes de iludir a rede de controlo chinesa.
A situação não é, como se vê, linear. O sistema chinês de censura, por um lado, tem vindo a agir por reacção a posteriori perante condições não previstas e, por outro, funciona em registos paralelos, ou não convergentes, uma vez que não se verifica uma clara hierarquia de funções neste domínio, coexistindo instituições com lógicas claramente diferenciadas como, por exemplo, por um lado, a da economia e do desenvolvimento acelerado e, por outro, a da política de um Estado autoritário; por outro lado, ainda, visto o crescimento deste sistema, o que se está a verificar é uma progressiva aliança estratégica com a indústria global das tecnologias da informação, designadamente pelo interesse dos grandes grupos económicos globais em actuarem na China, o que os leva a estreitar relações de compromisso com o poder de Pequim (Qiu, 2011: 154-155).
Num contexto destes, com real asfixia de tudo o que dificilmente o regime poderá tolerar, ganham margem de manobra no ciberespaço chinês tendências induzidas pelo próprio desenvolvimento da sociedade chinesa. Refiro-me, por um lado, à emergência do consumismo e da mundividência que ele transporta consigo e, por outro, ao nacionalismo, enquanto expressão de uma vontade nacional de desenvolvimento rápido promovido pelas tecnologias da informação e de afirmação no contexto mundial, relançando a China como potência tecnologicamente avançada, mas também enquanto ideologia política muito interessante para o poder político instalado. Jack Qiu considera que estas duas referências definem o essencial da identificação do universo dos internautas chineses[4]
A situação chinesa, do ponto de vista da rede, tem estado, portanto, sob controlo, pelos vários factores já identificados, entre os quais o consumismo e o nacionalismo, a atraente dimensão do mercado chinês, o regresso de emigrantes em condições de alavancarem a economia chinesa, as relações com as empresas multinacionais. Mas, como diz Qiu,

«mantém-se a promessa de que a rede traga maior liberdade ao Reino Médio, porque, concomitantemente com o auge tecnológico, uma sociedade civil madura está a emergir decididamente no mundo virtual e na realidade da China contemporânea. À medida que continuem proliferando as limitações políticas e económicas, a esfera das comunicações não reguladas continuará a expandir-se em direções imprevistas porque, fundamentalmente, são as necessidades de informação de milhões de internautas chineses as que produzem formas criativas de alcançar a informação» (2011: 160; itálico meu).

Certamente. Mas aqui estamos num universo politicamente fechado, onde a rede, sendo desejada, pelos adeptos do desenvolvimento acelerado, é também temida pela sua potência libertadora, numa sociedade onde a comunicação é entendida como simples meio instrumental, seja como alavanca de desenvolvimento económico seja como canal veículo de propaganda, mas nunca como ambiente onde se constrói a dinâmica do poder legítimo e onde se pode afirmar a liberdade a partir do indivíduo singular.
Combinados os factores que poderão limitar os efeitos disruptivos da rede sobre o sistema político chinês poder-se-á supor que, no essencial, a situação até poderá ser controlada pelas autoridades de Pequim. O enorme dispositivo de controlo tecnológico da rede, que poderá até contar com a ajuda silenciosa das grandes multinacionais, o quadro político-cultural chinês com hegemonia da ideologia oficial, o complexo do sistema mediático de comunicação controlado pelo poder político, a emergência de uma nova ideologia do consumo decorrente do crescente afluxo de novos bens de consumo, tangíveis e intangíveis, à sociedade chinesa, o despertar de um nacionalismo de «grandeur» nacional de inspiração desenvolvimentista e de potência mundial, acarinhado pelo poder de Pequim – tudo isto poderá abrir um quadro evolutivo da rede e de conteúdos que poderão ser inteligentemente harmonizados, por um lado, com uma nova sociedade de mercado em plena expansão e, por outro, com um ordenamento político fechado e autoritário cada vez mais virado somente para os nós críticos do sistema. É uma situação que merece um acompanhamento permanente, precisamente porque nela pode residir a chave resolutora de um paradoxo que entra pelos olhos de todos nós. Sobretudo quando assistimos nas sociedades ocidentais livres à emergência política da rede com efeitos verdadeiramente disruptivos sobre o sistema. É o que está a acontecer em Itália, como veremos de seguida.

A rede em ambiente democrático: o caso italiano

«È in corso una guerra tra due mondi. Tra due diverse concezioni della realtà». [Guerra] «nascosta dai media, temuta dai polítici, contrastata dalle organizzazioni internazionali, avversata dalle multinazionali». «Questa guerra totale (...) è dovuta alla diffusione della rete». «I giornali stanno scomparendo, poi verrà il turno delle televisioni... tutta l’informazione confluirà in rete e chiunque potrà diventare prosumer, ossia al tempo stesso produttore e fruitore dell’informazione». «La partecipazione diretta dei cittadini alla cosa pubblica sta prendendo il posto della delega in bianco».
Isto dizem Gianroberto Casaleggio e Beppe Grillo, em «Siamo in guerra. Per una nuova política» (2011: 3-4), introduzindo desde logo um novo conceito para identificar o cidadão digital, naquela que é a diferença essencial relativamente ao cidadão da era mediática: prosumer.

1. A emergência do «prosumer» político

Beppe Grillo e Gianroberto Casaleggio, o seu «Spin Doctor», na apresentação do seu livro, estabelecem já todo um programa: guerra entre duas concepções do mundo, induzida pela rede, que acabará por substituir toda a velha parafernália comunicacional, onde cada cidadão se pode tornar «prosumer» e, neste mesmo registo, se pode tornar governante no lugar dos velhos representantes de má memória…
Aqui está o programa de uma nova formação política quer surgiu no seio de uma democracia consolidada, num importante País ocidental, economicamente poderoso e onde está a acontecer, de facto, o mais importante fenómeno político da rede dos nossos dias. Fenómeno que parece emergir num ambiente equivalente, mas consequente ao que viu surgir Berlusconi, em 1994. Fenómenos – ambos - únicos em todo o mundo, e que confirmam a Itália como o mais interessante laboratório político que se conhece, pelo menos desde a Marcha sobre Roma, em 1922.
Na verdade, é possível concluir que se Berlusconi representou o último estádio da sociedade mediática e da «democracia do público» (veja-se, a este respeito, o meu livro sobre «Media e Poder»: Santos 2012), Grillo surge verdadeiramente como o seu sucessor, embora num registo alternativo, ou seja, no interior de um novo e revolucionário paradigma comunicacional e político: o da rede. Como dizem Ceccarini e Bordignon:

«Politics and the parties are being shaken by a deep crisis of legitimacy. Economic problems, judicial investigations and lack of faith in the political class recall the situation in the early 1990s, when an already weakened system imploded under the impetus of the ‘Clean Hands’ judicial investigations. This prompted the so-called Italian political transition towards the Second Republic. Berlusconi’s entry into politics in 1994, and the twilight of Berlusconism that began in the Autumn of 2011, with the fall of his government, delimit this long phase. Now, the country is witnessing the beginning of a new transition. Where it will lead is hard to determine, but the M5S is certainly one of the major protagonists» (Bordignon e Ceccarini, 2013).

É isto mesmo que urge compreender, a nova transição, com a rede, depois de consolidada a superação definitiva da era dos «partidos-igreja» em Itália (por exemplo, da DC e do PCI), por obra, certamente, da queda do Muro de Berlim, do furacão mãos-limpas e da irrupção em cena dos media como directos protagonistas políticos, pela mão de Silvio Berlusconi. Esta transição durou quase vinte anos, mas não foi provavelmente uma transição para uma estável «democracia do público», uma vez que, 19 anos depois, irrompe de novo em cena um protagonista que já está a ameaçar os fundamentos inacabados da revolução berlusconiana. E esse protagonista, Beppe Grilo, vem bem acompanhado, ou seja, emerge na rede. Numa palavra, poderíamos dizer que passámos, assim, do tempo dos «cach all media», dos «catch all parties», dos «partidos do público» e da «democracia do público» para um novo tempo, o que vê afirmar-se cada vez mais o modelo «digital» de comunicação e de política: «catch all net», com o seu novo modelo de poder, o «poder diluído», na sua moldura digital (veja-se a este propósito Timoteo, 2005), e com um novo modelo de cidadão: o «prosumer», produtor e consumidor de política e de informação.
É claro que esta passagem não é radical, embora o M5S abomine e ataque frontalmente os media tradicionais, que, todavia, estão presentes – sobretudo a televisão - como importantes fontes de informação. Não é radical também porque muitos – mesmo dentro do movimento – consideram que Beppe Grillo e Gianroberto Casaleggio, afinal, usam a rede de forma autoritária, instrumental e unidireccional, precisamente como acontecia com os media tradicionais, sendo, por outro lado, também certo que os restantes partidos, sobretudo o PD e o PDL, também a usam de forma intensa. E, todavia, o Movimento Cinque Stelle representa, de facto, uma novidade, precisamente do ponto de vista da rede. Dizem Lorenzo Mosca e Cristian Vaccari, em «Il movimento e la rete» (Corbetta e Gualmini, 2013), tomando em consideração o período eleitoral que ocorreu entre 2010 e 2012:

«O interesse e o consenso conquistados pelo «Movimento 5 Stelle» e pelos seus candidatos nas eleições autárquicas foram frequentemente considerados o sinal de uma mudança nas modalidades e nas formas da comunicação política em Itália. Em particular, os candidatos «5 Stelle» resultaram menos visíveis nos mass media  em relação aos outros partidos principais, mas compensaram, pelo menos em parte, esta desvantagem através da web. A Internet foi escolhida por Beppe Grillo e pelos activistas do Movimento como a arena principal para lançarem o desafio aos partidos, à classe política e, não por último, ao sistema de informação. Não foi por acaso que o segundo V-Day, em Turim, a 25 de Abril de 2008, teve como alvo a “casta dos jornalistas” e os mass media. E é opinião comum que os eleitores do Movimento têm uma relação particularmente estreita com a rede, muitas vezes considerada instrumento alternativo e não complementar aos mass media, em particular à televisão, que nas últimas duas décadas foi o coração da comunicação política em Itália» (2013: 169).

Com efeito, se é certo que as diferenças quantitativas entre os candidatos do Movimento e os dos dois maiores partidos, do ponto de vista do uso da rede, não foram muito significativas, de realçar, todavia, é a diferença no uso da rede pelos apoiantes do M5S, não só para obtenção de informação, mas também do ponto de vista da participação activa destes nos circuitos de informação do Movimento: «os resultados confirmam, portanto, a hipótese de que a Internet é bem mais relevante como fonte de informação para os apoiantes do Movimento do que para os dos outros partidos» (2013: 184). Mas, mais: «para o M5S a Internet não é só um canal com o qual se chega a uma parte consistente do eleitorado, evitando a mediação jornalística. A rede é também um potente multiplicador destes conteúdos porque activa e facilita a comunicação interpessoal dos simpatizantes do Movimento, que utilizam intensamente os ambientes de informação e de discussão política on line para formar e difundir as suas opiniões». «Deste ponto de vista», continuam os autores, é sobretudo «das dinâmicas de difusão, desde baixo, de conteúdos e opiniões na rede, mais do que através de uma maior capacidade e intensidade de utilização da web por parte dos seus candidatos locais, que parece derivar o sucesso do Movimento na rede» (2013: 192-193). Ou seja, parece não haver dúvidas de que os simpatizantes do Movimento partilham de facto de uma «cultura de rede», ao contrário dos simpatizantes dos partidos tradicionais que tendem a vê-la como um mero instrumento de difusão de mensagens. A diferença, portanto, reside mais na base do que nos protagonistas. Ou seja, o Movimento tem mais sucesso nos ambientes que vivem uma «cultura de rede» do que propriamente nos protagonistas políticos formais. E esta é uma diferença absolutamente vital.

Os factos

Mas vejamos os factos. O que se passou nas recentes eleições italianas de Fevereiro de 2013 só vem confirmar, de forma muito significativa, o que já estava a acontecer no plano das eleições locais e, sobretudo, representa uma nova fuga para a frente, depois do que já acontecera em 1994, com Silvio Berlusconi. Com efeito, em muito pouco tempo, um movimento saído (quase) do nada transformou-se na primeira força política italiana. O «Movimento Cinque Stelle», de Beppe Grillo, obteve na Câmara dos Deputados 8.689.458 votos, equivalentes a 25,55% do eleitorado que votou. Este resultado fez dele a primeira força política italiana, à frente do Partito Democratico (de Bersani) e de Il Popolo della Libertà (de Berlusconi). Mario Monti («Rigor Montis», como lhe chama, sarcasticamente, Grillo) ficou-se pelos 8,30%. Vistas as circunstâncias, Grillo e Berlusconi foram os grandes vencedores das eleições.
Tendo-se tornado um proscrito do sistema televisivo, depois de ter contado na TV uma sarcástica anedota sobre os socialistas de Bettino Craxi[5], o então Secretário-Geral do PSI, Grillo fez da sátira política o centro do seu discurso, nas praças, teatros ou pavilhões desportivos italianos, mobilizando um público farto da classe política, daquela «Casta» de que falam Sergio Rizzo e Gian Antonio Stella no livro, demolidor e de estrondoso sucesso, «La Casta» (Milano, Rizzoli, 2007, com 20 edições no mesmo ano). O seu blogue surge em 2005, mas poucos anos depois já era considerado, por The Observer e pela Revista Forbes, um dos mais influentes do mundo. O movimento M5S é criado em 2009, iniciando a sua movimentação nas eleições autárquicas e reforçando cada vez mais o seu peso político (obteria 4 presidências de Câmara nas eleições autárquicas de 2012, entre as quais a de Parma, e tornar-se-ia o maior partido na Sicília). Não se trata de um movimento qualquer. Movimento da rede, vive da revolta ética e de uma retórica cómico-sarcástica contra a classe política e contra o establishment mediático[6]. Ou melhor, contra a promiscuidade entre media e política que sempre se verificou em Itália e que se tornou elemento central de denúncia, de crítica e de radical rejeição por parte do M5S (Mosca e Vaccari, 2013: 170). Portanto, nasceu, desenvolveu-se e consolidou-se na rede: beppegrillo.it. Tal como Berlusconi, também Grillo se alimenta da revolta ética, mas no interior de um novo paradigma: movimento digital, procura dar voz à novíssima onda dos «indignados». Do que se trata é de algo muito forte que vem emergindo na sociedade, sem que os agentes tradicionais (partidos) lhe estejam a dar a devida atenção, não só incorporando esta nova lógica da comunicação, sem fins puramente instrumentais, mas sobretudo reconfigurando-se radicalmente em função do novo paradigma emergente. Este Movimento, que nasce no interior deste novo paradigma, acabou por captar eleitoralmente significativas faixas eleitorais provenientes quer do centro-esquerda quer do centro-direita[7], demonstrando, assim, assumir uma clara identidade pós-ideológica. Um movimento que, à semelhança do que acontecera com Berlusconi, e mais em geral com os movimentos de inspiração populista, surge num ambiente de profunda crise política e económico-financeira e aponta o dedo em riste, perante os italianos, aos culpados: o establishment político e o establishment mediático. Ou seja, aponta o dedo aos dois elementos centrais do sistema político.

Neopopulismo digital?

Esta questão – a do populismo – é, de facto, levantada por vários autores. Por exemplo, por Roberto Biorcio e Paolo Natale (2013) ou por Piorgiorgio Corbetta (2013). Vejamos, com Corbetta, esta questão.
É verdade que as tendências populistas nascem e crescem em ambientes de grande incerteza, de crise e de forte desgaste das instituições, o que, de certo modo, se verificou quer no caso de Berlusconi (com «tangentopoli») quer no caso de Grillo. Corbetta di-lo e desenvolve uma interessante análise de verificação da natureza do M5S relativamente ao populismo. Por um lado, reconhece que o M5S alinha mais com a tendência a repor a centralidade da ideia de «povo-soberano» do que as que propõem a centralidade do «povo-classe» ou do «povo-nação». O «povo-soberano» retomaria assim a soberania nas suas mãos, retirando-a dos representantes. As outras duas ideias estariam longe do M5S porque nem ele se reconhece, por um lado, como representante dos excluídos e marginalizados do processo de desenvolvimento nem, por outro lado, exibe uma identidade comunitária assente em afinidades culturais, linguísticas, de sangue, históricas, etc.. Neste sentido, o M5S exibe uma identidade política muito clara: contra a representação política, contra o mandato não imperativo. Mas ele exibe também outra característica afim aos movimentos populistas, a do líder carismático, qual substituto da classe dos representantes e intérprete oracular e legítimo dos sentimentos difusos do povo soberano. O líder seria, então, o depositário de um mandato fiduciário para agir em nome do povo, não com a lógica racional da representação, mas com a pulsão emocional de uma pertença imanente ao povo. Esta característica própria dos populismos ganha, todavia, no M5S uma originalidade que não existia antes: o povo-soberano tem hoje, através da rede, canais permanentes de expressão da sua vontade junto do líder e dos «comissários» que não existiam antes e que podem dar expressão a uma prática deliberativa mais avançada do que a velha representação política exclusiva. E esta é uma característica nova, relativamente aos populismos clássicos. Por outro lado, o recurso a esta nova tecnologia de participação política inaugura também uma outra novidade em relação ao passado. Ou seja, quando os populismos tendiam sempre a exprimir a voz dos excluídos do progresso, daqueles que estavam a ficar à margem do movimento histórico, assumindo-se generalizadamente como anti-modernos, o M5S apresenta-se precisamente como o porta-voz da modernidade: «como se pode facilmente ver, com o M5S encontramo-nos num planeta completamente diferente: o povo ao qual apela Beppe Grillo não «é o povo “simples e humilde”, mas é o povo sofisticado da web; não nasce do desconforto perante a modernidade, mas da própria modernidade» (Corbetta, 2013: 203). Ou seja, o M5S apresenta originalidades tão significativas em relação aos velhos populismos que o colocam muito longe dessa tradição: moderno ou mesmo «pós-moderno»,  praticante de uma autêntica «cidadania activa» através da rede e fautor de uma nova «democracia deliberativa» que tem o líder como garante, sim, mas que acciona uma permanente participação do povo soberano na decisão política. É neste sentido que o M5S promove uma autêntica reviravolta no processo político: não procura enxertar mecanismos de democracia directa no sistema representativo, antes procurando enxertar o sistema «representativo» na democracia directa, naturalmente alterando profundamente a natureza do próprio mandato (Corbetta, 2013: 197-214; veja-se também Biorcio e Natale, 2013: 135-151).

Catch all Net

A verdade é que se Berlusconi representou, a seu tempo, uma viragem relativamente à forma tradicional de fazer política, radicalizando o modelo mediático de comunicação política, «catch all media», que em teoria política se chama «catch all party», e invertendo a fórmula clássica da relação entre a oferta e a procura (a procura passava a anteceder a oferta, exactamente ao contrário do que acontecia na fórmula clássica), agora, Beppe Grillo está a fazê-lo também, mas traduzindo em política a emergência da rede nas nossas vidas e a sua extraordinária capacidade de mobilização instantânea, apelando a todos sob a forma de apelo a cada um, individualizado: «catch all net». Castells chama-lhe «mass-self communication», comunicação individual de massas. Grillo e Casaleggio enunciam, em «Siamo in Guerra», aquela que eles definem como a «lei da rede»: «cada um vale um». A rede permite, de facto, a emergência da singularidade, sem recurso a organizações, apoios, gatekeepers, dinheiro: «somos todos jornalistas», diz Grillo. Requer, simplesmente, genialidade individual, recursos intelectuais, criatividade, inovação na narrativa. Grillo começa a propor formas de democracia pós-representativa, ou seja, à medida que vai criticando a velha forma de representação política separada - «to change [Italy], politicians have to be replaced by the citizens» - propõe, no programa político que apresentou aos italianos[8], uma «cidadania digital» obtida à nascença e concretizada através de um acesso universalmente gratuito à rede: «cittadinanza digitale per nascita, accesso alla rete gratuito per ogni cittadino italiano». Por outro lado, as decisões relevantes são postas à discussão no sítio do M5S. Os temas - para além (a) da crítica às elites políticas e mediáticas, (b) da promoção de uma cidadania digital que substitua a velha representação centrada na separação entre governantes e governados e entre produtores de informação e cidadãos[9] e (c) da promoção da rede e dos instrumentos digitais como meios de libertação -são mais próprios dos movimentos do que dos partidos e mais próximos das «policies» locais do que das nacionais[10]: água, ambiente sustentável, energia, transportes, desenvolvimento, alimentos de qualidade, conectividade, serviços sociais. Os cinco primeiros objectivos correspondem, como diz Elisabetta Gualmini (Corbetta e Gualmini, 2013: 12; veja-se também Vignati, 2013: 48-49), às cinco estrelas inscritas no nome de um movimento, o M5S, que não é verdadeiramente um partido. Melhor: que é uma não-associação, como se autodefine[11]. Na verdade, o M5S, tal como o define o sítio do movimento (agora em beppegrillo.it), é:

«una libera associazione di cittadini. Non è un partito politico nè si intende che lo diventi in futuro. Non ideologie di sinistra o di destra, ma idee. Vuole realizzare un efficiente ed efficace scambio di opinioni e confronto democratico al di fuori di legami associativi e partitici e senza la mediazione di organismi direttivi o rappresentativi, riconoscendo alla totalità dei cittadini il ruolo di governo ed indirizzo normalmente attribuito a pochi».

Como se vê, o M5S é uma «livre associação», ou seja, uma associação aberta a todos os cidadãos, sem as mediações de estrutura próprias de partidos ou associações que filtrem os actos de uma cidadania livre, através de uma dinâmica representativa. À totalidade dos cidadãos está confiada aquela capacidade de orientação e de governo que antes estava confiada somente aos representantes. E como? Através da Rede. O processo está descrito no «Código de Comportamento dos Eleitos do Movimento 5 Estrelas no Parlamento»: «L’obiettivo principale dei parlamentari eletti è l’attuazione del Programma del M5S, in particolare per i principi della democrazia diretta come il referendum propositivo senza quorum,  l’obbligatorietà della discussione parlamentare con voto palese delle proposte di legge popolare e l’elezione diretta del parlamentare». Os cidadãos poderão votar, na Rede (no Portal do Movimento), propostas de lei que, em certas condições, deverão depois ser apresentadas pelo Grupo Parlamentar do MoVimento:

«Le richieste di proposte di legge originate dal portale del MoVimento 5 Stelle attraverso gli iscritti dovranno obbligatoriamente essere portate in aula se votate da almeno il 20% dei partecipanti. I gruppi parlamentari potranno comunque valutare ogni singola proposta anche se sotto la soglia del 20%».

Não há, pois, dúvida de que o M5S se constituiu como um canal de comunicação da cidadania com a mais alta instância do poder, da forma mais expedita de que há memória, através da rede, dando uma nova configuração ao velho mecanismo de iniciativa popular, agilizando-o, não só através da funcionalização do grupo parlamentar ao instituto da iniciativa popular, mas também baixando drasticamente as exigências regulamentares, designadamente no número de intervenientes no processo. Vejamos uma simples amostra das exigências do mecanismo de iniciativa popular em Portugal, Espanha, Itália e Brasil:

1. em Portugal, são necessários 35.000 eleitores intervenientes no instituto da iniciativa popular, designado por «iniciativa legislativa dos cidadãos» (n.º 1, art. 6, Lei 17/2003, de 4.06, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2012, de 24.07); 
2. em Espanha são necessárias assinaturas de 500.000 eleitores (n.º 3 do art. 87 da Constituição espanhola);
3. em Itália são necessárias 50 mil assinaturas (art. 71 da Constituição italiana); 
4. no Brasil é necessário 1% dos eleitores, distribuído por um mínimo de 5 Estados federados  (§2 do art. 61 da Constituição brasileira) .

Se o instituto da iniciativa popular, tal como o referendo, era um instituto de democracia directa enxertado no sistema representativo, esta prática do M5S parece inscrever-se numa lógica inversa, a de usar instrumentalmente o sistema representativo para introduzir em pleno a democracia digital directa. «Obiettivo, nemmeno tanto implícito», dizem Gianluca Passarelli, Filippo Tronconi e Dario Tuorto, em «Una rivoluzione democratica o solo un altro partito?» (Corbetta e Gualmini, 2013: 123), «è quello di innescare una rivoluzione democratica, improntata alla partecipazione diretta dei cittadini nella gestione della cosa pubblica, in antitesi con il modello di democrazia rappresentativa». É como se o espaço público deliberativo digital passasse a estar dotado de comissários junto das instituições capazes de accionar institucionalmente as deliberações. Este sistema representaria, assim, o regresso do vínculo de mandato e o fim do mandato não imperativo, anulando aqueles que são os princípios base do próprio sistema representativo.  

Democracia digital

O M5S, por um lado, não surgiu promovido pelos «media» e, por outro, não resultou directamente de movimentos orgânicos. O «M5S», de beppegrillo.it, é um movimento que nasceu, cresceu e se desenvolveu na rede, sobretudo a partir do  Blog de Beppe Grillo e do Meetup de 2009, sob a batuta do cómico-político, único proprietário da «marca» «MoVimento 5 Stelle» («Il nome del MoVimento 5 Stelle viene abbinato a un contrassegno registrato a nome di Beppe Grillo, unico titolare dei diritti d’uso dello stesso»), ainda que apoiado pela empresa de Gianroberto Casaleggio, a «Casaleggio Associati», que lhe prepara e desenvolve todo o processo organizativo e comunicacional. A seu tempo, já fora muito estranho que um empresário de «media», através de uma auto-organização política desenvolvida ao longo de cerca de nove meses, acabasse por chegar a Primeiro-Ministro, rompendo com uma antiga tradição de separação funcional entre gestão da economia e gestão política. A sua retórica fora a mesma de Grillo: fora com os «politicanti senza mestiere», os politiqueiros sem profissão! Uma retórica fundada na revolta ética contra a velha classe dirigente devastada pelo furacão de «tangentopoli», sobretudo democratas cristãos e socialistas, mas fundada também na exigência de entregar a política a pessoas que tivessem profissão fora da política. O mesmo que agora reivindica, de forma mais radical e alargada, Beppe Grillo. Berlusconi quis tirar a gestão política das mãos dos políticos «sem profissão», entregando-a a profissionais de sucesso, como ele próprio. Grillo quer entregar a política aos cidadãos, acabando com a representação. O primeiro vivia no mundo dos «media» e, a partir daí, fez o assalto ao Poder, concebendo a política como «continuação do audiovisual por outros meios». Agora, o segundo, que já vive no mundo da rede e que recusa também o establishment mediático (no Código de comportamento dos eleitos do M5S no Parlamento existe uma cláusula que aconselha os Deputados a evitar os «talk shows» televisivos: «Evitare la partecipazione ai talk show televisivi»), quer acabar de vez com a representação política, transformando a democracia italiana em «democracia digital». Se o primeiro ainda via a política como assunto de elites, o segundo vê-a como assunto de cidadãos ou, melhor, de internautas. Grillo fala de «cidadania digital» e de acesso universal gratuito à rede. E o seu «spin doctor», Gianroberto Casaleggio, até já publicou um vídeo com as grandes linhas da nova utopia: «gaia - the future of politics». (http://www.youtube.com/watch?v=sV8MwBXmewU ).

Conclusão

Não há dúvida que o caso italiano confirma o que muitos vêm dizendo há muito tempo. Ou seja, que a política não só já não pode prescindir da rede, como também já não pode prescindir da lógica que a rede induz: a lógica de um «poder diluído» (Jesús Timoteo) que é mais amigo do indivíduo singular do que das grandes organizações, políticas ou mediáticas. Pelo menos, no que diz respeito ao processo de formação do consenso. Este processo já não pode ser abordado com a lógica das grandes organizações, mas sim com a lógica da rede, que é a do indivíduo singular e interactivo. Ou seja, a rede não é um mero instrumento – igual aos outros – para chegar ao maior número possível de eleitores. Ela é muito mais. Foi por isso que a partir dela se começou a construir muitas utopias de democracia directa. O M5S está a tentar fazê-lo no seu interior. Só que a coisa está a revelar-se muito complexa, sobretudo após as recentes eleições legislativas, quando o M5S foi convocado, de forma muito substancial, à gestão de um poder institucional dotado de regras muito bem definidas para o exercício do poder. Se é verdade que no processo de construção do consenso a rede é cada vez mais decisiva, também é verdade que não só a lógica de poder diluído que ela induz é altamente problemática: (a) quando se trata de gerir o poder institucional, (b) com as regras que o próprio exercício decisional no interior das instituições políticas supõe, (c) com as teias de compromissos que a decisão política exige, (d) com as malhas constitucionais que delimitam o alcance das decisões, (e) com os corpos sociais organizados em torno dos seus interesses e das suas indiossincrasias e (f) com a velocidade de decisão necessária e os imprevistos que sempre acompanham o exercício do poder! 
A experiência de Grillo será muito útil para se compreender a outra face da Rede, ou seja, a do directo embate com a concreta gestão do poder. Se é claro o papel da rede no processo de acesso ao poder, já não é assim tão clara a conversão deste mesmo processo em termos gestão ou de exercício do poder institucional. E a grande questão reside numa simples palavra: representação[12]. Conhecendo a longa história da representação política (formulada admiravelmente por Locke, em 1790, no último parágrafo do «Segundo Tratado sobre o Governo, §243), as razões do seu aparecimento, não será fácil superá-la, ainda que hoje disponhamos de meios fantásticos de decisão on line, seguros e velocíssimos. E a razão é verdadeiramente prosaica: tem a generalidade dos cidadãos as competências, o saber e a disponibilidade para entrar no complexo e absorvente circuito do processo decisional público? E as lideranças carismáticas poderão constituir a melhor garantia de processamento democrático da decisão pública? O exemplo do M5S, dotado de dois consistentes grupos parlamentares no Parlamento Italiano, será muito importante para compreendermos as verdadeiras vias da nova transição. 

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[1] Este ensaio faz parte de um livro em curso de publicação sobre «Media, Rede e Poder» que constitui o resultado de uma investigação desenvolvida com o apoio da FCT.
[3] Os acessos são feitos a partir de casa (63%), dos escritórios (43%) e dos cibercafés (20%) (Qiu, 2011: 145).
[4] Mas veja-se também o que diz Castells, em «Comunicación y Poder», sobre o assunto, indo na mesma direcção de Qiu: «Entre los estudiantes y los jóvenes en general, la principal ideologia política que genera una gran simpatia es el nacionalismo, especialmente contra Japón y Taiwán». (…) «Si a esto sumamos el echo de que más de dos tercios del uso de Internet en China es para entretenimiento, y que la principal preocupación de los urbanitas con educación, que son el grueso de los usuarios de Internet, es el consumo, muy bien pudiera ser que el gigantesco sistema desplegado por el gobierno chino para controlar Internet sea más bien un reflejo del pasado que una necesidad real» (Castells, 2011: 375). O que, todavia, fica por demonstrar, em especial se não se tiver em conta a poderosa máquina da autocensura, quando o sistema está todo ele construído com base na lógica da proibição: «é proibido tudo aquilo que não é permitido».
[5] Novembro de 1986, no programa Fantastico 7, Grillo conta uma anedota sobre os socialistas de Bettino Craxi, então Presidente do Conselho de Ministros: «La cena in Cina. C’erano tutti i socialisti , con la delegazione, e mangiavano… A un certo momento Martelli ha fatto una delle figure più terribili. Ha chiamato Craxi e gli ha detto: “Ma senti un pò, qua ce n’è un miliardo e son tutti socialisti?”. E Craxi gli ha detto: “ Sì, perché?”. “Ma, allora, se son tutti socialisti, a chi rubano?”» (Vignati, 2013: 29).
[6]  Grillo já tentara, em 2008, promover três referendos,  tendo como alvo o establishment mediático: um, para abolir a ordem dos jornalistas; outro, para acabar com os subsídios públicos à actividade editorial e, outro, ainda, para revogar a famosa Lei Gasparri sobre o audiovisual (que beneficiara Berlusconi) (Vignati, 2013: 48).
[7] Nas autárquicas de 2012, 46,3% provenientes do centro-esquerda e 39% provenientes do centro-direita (Corbetta e Gualmini, 2013: 10).
[9] Os cidadãos serão «prosumers», ou seja, ao mesmo tempo produtores e consumidores de informação e, por isso, produtores e consumidores de política.
[10] Como diz Piergiorgio Corbetta, o primeiro dilema é o que contrapõe local a nacional: «o movimento nasceu a nível político nas administrações locais, e eram estas que os fundadores tinham em mente quando inventaram o nome da organização política, onde as 5 estrelas significavam água, ambiente, energia, transportes, desenvolvimento, todos temas de política a nível comunal» (Corbetta, 2013: 212). De resto, a projecção a nível nacional de algo que poderia funcionar somente a nível local (inscrita na ideia de democracia participativa) caminha ao lado de outro desafio mortal, ou seja a passagem de movimento político a instituição que tem de se confrontar com as exigências da dura realidade.  
[11] « Il “MoVimento 5 Stelle” è una “non Associazione”. Rappresenta una piattaforma ed un veicolo di confronto e di consultazione che trae origine e trova il suo epicentro nel blogwww.beppegrillo.it. La “Sede” del “MoVimento 5 Stelle” coincide con l’indirizzo webwww.beppegrillo.it.
I contatti con il MoVimento sono assicurati esclusivamente attraverso posta elettronica all’indirizzo MoVimento5stelle@beppegrillo.it».
«Il “MoVimento 5 Stelle” intende raccogliere l’esperienza maturata nell’ambito del blog www.beppegrillo.it, dei “meetup”, delle manifestazioni ed altre iniziative popolari e delle “Liste Civiche Certificate” e va a costituire, nell’ambito del blog stesso, lo strumento di consultazione per l’individuazione, selezione e scelta di quanti potranno essere candidati a promuovere le campagne di sensibilizzazione sociale, culturale e politica promosse da Beppe Grillo così come le proposte e le idee condivise nell’ambito del blog www.beppegrillo.it, in occasione delle elezioni per la Camera dei Deputati, per il Senato della Repubblica o per i Consigli Regionali e Comunali, organizzandosi e strutturandosi attraverso la rete Internet cui viene riconosciuto un ruolo centrale nella fase di adesione al MoVimento, consultazione, deliberazione, decisione ed elezione. Il MoVimento 5 Stelle non è un partito politico né si intende che lo diventi in futuro. Esso vuole essere testimone della possibilità di realizzare un efficiente ed efficace scambio di opinioni e confronto democratico al di fuori di legami associativi e partitici e senza la mediazione di organismi direttivi o rappresentativi, riconoscendo alla totalità degli utenti della Rete il ruolo di governo ed indirizzo normalmente attribuito a pochi (www.movimento5stelle.it – Non Statuto)». Este não-estatuto foi redigido por Beppe Grillo e pelo seu Spin Doctor Gianroberto Casaleggio (Vignati, 2013: 40).

[12] Para uma síntese bibliográfica sobre o «Movimento 5 stelle» veja-se Biorcio e Natale (2013: 153-154)