sábado, 15 de agosto de 2009

Media, eleições e regulação

A recente Directiva 2/2009, 29 de Julho, da ERC , Entidade Reguladora para a Comunicação Social, levantou uma grande polémica e uma fortíssima rejeição por parte dos media em geral. O que dizia, no essencial, a directiva? Duas coisas: dever de garantir iguais oportunidades aos candidatos (nas autárquicas ou nas legislativas) no espaço mediático ou suspensão temporária da colaboração dos candidatos que nele já se encontravam presentes como comentadores. Sobre a Rede a ERC nada disse, provavelmente porque este é um espaço livre, onde todos podem aceder sem pedir licença a ninguém, onde não há «gatekeepers», mediadores, banqueiros simbólicos, donos da opinião. Provavelmente, nem sequer poderia dizer, visto que, apesar de ser um espaço público, é um espaço não regulado. É o espaço da «mass self communication», da «comunicação individual de massas». Aqui, candidatos, partidos ou movimentos podem apresentar-se aos cidadãos sem mediadores. Livremente. A eficácia do seu discurso e da sua proposta política dependerá exclusivamente da sua capacidade de se moverem bem na Rede e de produzirem bons conteúdos com concretos referentes sociais. Aqui, a exposição dependerá da capacidade de cada um. Já nos media tradicionais o acesso depende precisamente dos «gatekeepers», aqueles que têm o poder de dar voz ou de silenciar, quer através da informação quer mediante a abertura de espaços de livre opinião. E é aqui que bate o ponto. Devem os media tradicionais (televisão e imprensa) abrir os seus espaços de opinião a todos os candidatos, em igualdade de condições, ou devem, mesmo em tempo de eleições, continuar a aplicar escrupulosamente as regras dos seus códigos éticos, sem cuidarem de introduzir critérios mecânicos ou externos de representação que remetam, por exemplo, mais para a esfera da política do que para os seus próprios critérios internos? A resposta a esta questão depende dos conceitos de media e de função social dos media. E, na verdade, se olharmos para o longo historial dos códigos éticos, o que sempre encontramos é a tentativa de regular a informação a favor do cidadão. Antes, libertando-a da tutela política; depois, libertando-a da opressão comercial, proprietária, instrumental. Num caso e no outro o destinatário era sempre o cidadão, no primeiro, mais indirectamente, no segundo, mais directamente. O que foi sempre comum, desde os tempos de Diderot e D’Alembert, foram os princípios ou normas éticas que regulam a informação: a imparcialidade, a objectividade, a neutralidade, a relevância, a verdade, a responsabilidade moral, o rigor, a integridade, a exactidão, a distinção entre factos e opiniões, etc., etc.. Mas estes são princípios ou normas internas aos media. E são princípios que garantem a sua legitimidade, a sua credibilidade perante o público, servindo também para proteger os próprios agentes orgânicos do sistema mediático. Até na guerra. Quanto mais fortes forem estes princípios, mais sólidas são a informação, a opinião pública e, naturalmente, a própria democracia. Ou seja, o que as entidades reguladoras da comunicação social devem garantir ou promover regularmente é a aplicação destes princípios e normas em todos os campos da informação, incluído o político, evitando impor comportamentos editoriais externos ou mesmo contrários a esta lógica, como acontece com esta directiva (transcrevo infra um artigo publicado no «Diário Económico», em 04.04.2008, sobre o mesmo assunto). Com efeito, esta directiva propõe a adopção de um critério que é externo ao critério editorial: o acesso automático ao espaço mediático, ou a exclusão dele, em função, não de critérios editoriais, mas de um critério político-jurídico, a condição legal de candidato. Ora este critério é externo à lógica da regulação, porque externo à lógica editorial. Há um princípio dos códigos éticos muito importante que se aplica aqui, com toda a pregnância. O princípio da relevância. Os media devem noticiar o que é relevante. Ora a aplicação do princípio da igualdade mecânica de acesso aos media é externo e fere o próprio código ético, designadamente este princípio fundamental. Porque a aplicação deste princípio é da exclusiva competência dos agentes orgânicos da informação, sendo qualquer interferência externa ilegítima, pelo menos tão ilegítima como a transgressão dos códigos éticos pelos próprios jornalistas. Não quero chegar ao ponto de considerar absolutamente anacrónicos os próprios «tempos de antena», afirmando que a melhor informação é a informação mediada, que hoje os instrumentos de acesso directo ao espaço público já estão disponíveis (Obama conseguiu 67% por cento do financiamento da campanha através da NET), que a consistência das forças políticas também deveria ser medida em função da sua própria relação orgânica com a sociedade civil (e que, em parte, é expressa em concretos apoios sociais e instrumentais) e que, tal como a condição legal de candidato não é condição suficiente para uma efectiva consistência orgânica e social, também não o é para uma efectiva consistência simbólica ou comunicacional. Digo tão-só que é preciso pensar no assunto, hoje, quando se funciona em «permanent campaigning», quando a Rede está ao alcance de todos, quando o acesso aos media tradicionais aumentou exponencialmente e quando a taxa de cobertura dos eventos e do quotidiano é enorme. Independentemente de se dever pôr em questão uma moldura institucional que está absolutamente desfasada no tempo e da realidade, servindo em boa parte para promoções pessoais sem consistência eleitoral ou para o reviver de arqueologias já sem sentido, uma coisa é certa: a função do Regulador é hoje a defesa do cidadão consumidor de informação, cumprindo-lhe intervir em defesa dos códigos éticos, não através da adopção de simples critérios quantitativos e mecânicos, construídos a partir de matrizes externas à lógica editorial. Ora a verdade é que a opção de informar, nos seus vários graus e dimensões, deve ser sempre determinada pelo critério interno da relevância e não por critérios exógenos à esfera editorial. E, também neste caso, a verdade é que a relevância dos sujeitos políticos resulta mais de um lento processo de construção e de afirmação temporal das próprias identidades do que de meras condições legais de possibilidade. Todos sabemos que em período de eleições surgem sempre fugazes e cíclicos protagonistas que se aproveitam oportunisticamente dos espaços mediáticos garantidos, regressando, depois, por quatro anos, ao anonimato em que sempre estiveram, sem terem demonstrado qualquer consistência eleitoral. Este processo, de resto, não se verifica só na política. Pelo contrário, conhecemos protagonistas que, sendo ou não sendo candidatos, estão regularmente presentes no espaço público e social, dando o seu contributo, intervindo de forma regular e consistente. Os media, se funcionarem de acordo com os princípios fundamentais dos códigos éticos (a relevância, o equilíbrio, a objectividade, a imparcialidade…) nunca deverão aceitar qualquer sobreposição de normas externas em relação a estas suas normas editoriais, distorcendo a realidade factual. Não quero com isto dizer que eles respeitem, no seu trabalho quotidiano, estes princípios, antes pelo contrário, mas não me parece edificante que seja precisamente a Entidade Reguladora a propor a introdução de critérios instrumentais e externos à esfera editorial. Em boa verdade, porque não partilho de uma concepção instrumental dos media – a informação surge neles como «bem público essencial» – e pelas razões que acima expus, creio que até seria oportuno questionar radicalmente o sentido dos próprios «tempos de antena». Tempos que têm vindo, esses sim, a garantir uma igualdade mecânica de presença no espaço público aos vários candidatos. E se a existência desses tempos não põe directamente em causa os códigos éticos, ela põe, todavia, em causa uma certa concepção não instrumental dos media. Na verdade, do que estamos mesmo a precisar é de uma reflexão profunda sobre tão delicadas esferas: a dos media e a da regulação. De resto, a regulação em geral não está a viver os seus melhores dias.

* Informação (DE, 04.04.09).
«Considero sempre muito relevantes todas as iniciativas de monitorização do estado dos sistemas informativos. Afinal, a informação é o alimento da cidadania activa. E, vista a evolução tendencial dos sistemas informativos, progressivamente tabloidizados, a analítica torna-se cada vez mais necessária. Tanto mais que se trata de um espaço onde a liberdade se joga de forma decisiva e onde se constrói ou destrói o consenso para o poder. Mas trata-se também de uma esfera onde a regulação é extremamente difícil, sendo sempre mais desejável a promoção da auto-regulação do que a regulação através de instrumentos legais impositivos. Por outro lado, a informação, sendo um bem público, mas ao mesmo tempo um produto mercantil, sofre os efeitos de um poderoso espartilho que gera um «hibridismo» informativo pouco desejável. Ou seja, a informação sofre de um paradoxo parecido com o daquele «serviço público» que, de tão asséptico ser, não consegue atrair público. O «hibridismo» informativo, pelo contrário, de tanto público querer acaba por não conseguir produzir verdadeira informação. Na tensão interna do «hibridismo» informativo, a dimensão que acaba por se impor é a do tabloidismo, do sensacionalismo, do «interesse humano», do «negativo». O mundo tende sempre a ser visto na óptica do «negativo». Porque é cognitivamente mais fácil e imediata e emocionalmente mais forte. Logo, capaz de atrair mais espectadores, leitores, consumidores. Recentemente, o maior diário português, o «Correio da Manhã», ao noticiar a nova organização judiciária, que prevê a transformação das 231 comarcas em apenas 39 circunscrições judiciais, fez a seguinte manchete: «192 vilas e cidades perdem comarcas». Trata-se, como é evidente, de uma opção noticiosa que valoriza o lado negativo da notícia, em detrimento do positivo (racionalização, flexibilidade e maior responsabilização na gestão do sistema). Por sua vez, o «Jornal de Negócios», numa coluna onde hierarquizava (do mais baixo ao mais alto) o IVA em 25 países da UE, colocava Portugal em 19.º lugar, optando por pô-lo no fim de uma lista de 5 países com a mesma taxa de IVA de 20%. Se o pusesse no início da lista – e a legitimidade era a mesma - Portugal ficaria colocado em 15.º lugar. Também aqui, a opção foi pelo negativo. Esta opção pelo negativo tem raízes históricas e confunde-se com as próprias origens da informação política e social, sobretudo a partir do século XVIII. Só que se tratava de uma crítica negativa dos poderes ocultos («arcana imperii») e da ausência de liberdade de informação. Pelo contrário, hoje, a «ideologia do negativo» tem mais a ver com a interacção produtor/consumidor do que com a promoção das funções de cidadania. A categoria do «negativo» é a categoria mais transversal do tabloidismo porque atravessa todos os géneros informativos, da política à economia, ao «interesse humano». Trata-se, cada vez mais, de uma luta pelas audiências e da «sobredeterminação» dos critérios informativos pelo princípio mercantil. Uma simples consulta aos números das vendas dos jornais e das revistas portuguesas dar-nos-á uma visão clara do que estou a dizer.
É por tudo isto que considero não ser muito relevante proceder a contagens de tempos de uso de antena por parte deste ou daquele agente político ou social sem assumir como decisivos os critérios de uma informação que contribua para a promoção das verdadeiras funções de cidadania. Por exemplo, o critério da «relevância» pública da notícia. Porque este é um critério decisivo do ponto de vista substancial (relevo público), formal (princípio central do código ético) e processual (meio de selecção das notícias). E porque, além disso, é um critério interno ao próprio sistema operativo da informação. Ora a procura da proporcionalidade entre a consistência eleitoral e a exposição noticiosa surge também como sobreposição ilegítima de um critério externo aos critérios próprios do sistema informativo. Por isso, é minha convicção que a «Entidade Reguladora da Comunicação Social» deveria repensar o modelo de análise da informação política, recolocando-se na óptica legítima dos grandes princípios que integram o património genético da informação para a cidadania. Tão ilegítima é a «sobredeterminação» mercantil quanto a «sobredeterminação» política da informação».

terça-feira, 11 de agosto de 2009

«Reflexões sobre a crise» (nova versão, Maio de 2012)

João de Almeida Santos


A propósito da recente crise, cujas consequências começam a manifestar-se em toda a sua pujança, com défices, dívidas e desemprego altíssimos em inúmeros países desenvolvidos, que já manifestam graves problemas de financiamento da dívida, mas também das mutações estruturais que se estão a verificar no panorama mundial, é urgente reflectir, procurando não ficar refém da conjuntura. Com efeito, estamos hoje perante dois fenómenos que ameaçam permanentemente a reflexão: um consiste na intensidade com que os fenómenos sociais se impõem à atenção do cidadão; o outro consiste na rapidez com que eles se processam, nascem e morrem. A intensidade provoca sempre uma sensação de absoluto no modo como olhamos para os fenómenos; a rapidez gera esquecimento, ou seja, tudo se consome e esquece em grande velocidade. O absoluto de hoje é um nada na memória de amanhã. É por isso que há que manter distância em relação às conjunturas, pensando-as num quadro macro-histórico. Para evitar o absoluto e o esquecimento.


Refiro, para o efeito, três ensaios muito esclarecedores sobre o assunto e que são tidos como referência:

1. "After capitalism" (in «Prospect», Abril de 2009 – prospectmagazine.co.uk), de Geoff Mulgan.
* Geoff Mulgan é o Presidente da Young Foundation desde que esta foi relançada em 2005. Entre 1997 e 2004 Geoff desempenhou diversos cargos no governo britânico: criou e dirigiu a Unidade de Estratégia do governo e foi director de política do Primeiro Ministro, Tony Blair. Antes disso foi fundador e director do Demos, descrito pelo Economist como o think-thank britânico mais influente.
2. "How the Crash Will Reshape [dar nova forma] America", (in «the Atlantic», Março 2009 – www.theatlantic.com), de Richard Florida.
* Richard Florida é um dos maiores intelectuais do mundo nas áreas de competitividade económica, tendências demográficas e inovação cultural. A revista Esquire considerou-o uma das “melhores e brilhantes” mentes da América. É autor de dois “bestseller” nos Estados Unidos: "The Rise of the Creative Class" e "The Flight of the Creative Class". O seu novo livro, "Who’s Your City?", já foi igualmente aclamado como “bestseller” no mercado americano, mas também “bestseller” internacional e livro do mês na Amazon. As suas ideias têm sido veiculadas através de campanhas publicitárias de grande dimensão, incluindo a BMW, a CNN e a CBS, e estão a ser usadas globalmente para mudar a forma das regiões e das empresas gerirem as suas actividades. Richard Florida é colunista regular no jornal «Globe and Mail» e escreve artigos para a Atlantic Monthly, o The New York Times, o The Boston Globe e Financial Times. Participou na 2004 Harvard Business Review’s List of Breakthrough Ideas. Fundou o Creative Class Group, uma empresa consultora de serviços de carácter global. É director do Martin Prosperity Institute da Rotman School of Management da Universidade de Toronto. Florida foi professor Heinz na Universidade de Carnegie Mellon, professor visitante em Harvard e no MIT, e foi ainda investigador associado do Brookings Institution.
3. "Capitalist Manifesto: Greed is Good" (in «Newsweek», Junho de 2009 – www.newsweek.com), de Fareed Zakaria.
* Fareed Zakaria é editor da «Newsweek International», colunista da «Newsweek» e do «Washington Post», comentador semanal da CNN e «bestselling author» do «New York Times». A «Esquire Magazine» considerou-o «the most influential foreign policy adviser of his generation”.



Mobilidade e emprego


A partir destas reflexões, por exemplo da reflexão de Florida, põe-se um primeiro problema: Portugal conhece hoje uma rede rodoviária excelente, um parque automóvel óptimo, um território pequeno e facilmente percorrível. Logo, boas condições de mobilidade. E esta é, como se sabe, uma variável muito importante para a economia, ou seja, para a mobilidade de mercadorias, serviços e pessoas. Óptimo, portanto. Mas, ao mesmo tempo, Portugal tem índices de propriedade imobiliária muito elevados. Ou seja, as vias de comunicação permitem uma mobilidade muito elevada à economia e ao mercado (custos excessivamente elevados das portagens à parte), mas o facto de os cidadãos estarem vinculados a um enorme parque habitacional próprio impede-os de se deslocarem e, portanto, de se oferecerem a este mercado. As razões são conhecidas. Não existe um verdadeiro mercado de arrendamento e, por isso, as pessoas preferem descontar para pagar uma propriedade futuramente sua - mesmo que o preço mensal da prestação seja superior - do que pagar uma renda por algo de que não virão a ser proprietários. As consequências são três: a) subida em flecha dos preços no sector do imobiliário, devido ao aumento da procura; consequententemente, b) endividamento familiar generalizado, elevado e de longa duração; e, finalmente, c) elevada rigidez no mercado de trabalho. Ou mais simplesmente: aumenta, no plano horizontal e no plano vertical, o endividamento familiar e diminuem as condições de acesso ao mercado de trabalho. Ou ainda: estamos perante uma enorme mobilidade na circulação de mercadorias e perante uma rigidez incomportável no mercado de trabalho. Sobre os USA, onde, apesar de tudo, a relação do cidadão com a propriedade imobiliária é muito diferente, muito mais flexível, diz o célebre autor do conceito de «classes criativas», Richard Florida:


«os lugares com um alto índice de propriedade imobiliária induzem um maior nível de desemprego». «O crescimento dos índices de propriedade imobiliária foi acompanhado por uma menor ductilidade da sociedade americana», provocando uma rigidez deslizante no mercado do trabalho, o que é um péssimo sinal para a economia (in «Reset», n.º 115, Roma, 2009, p. 44).


Outra questão reside na determinação dos sectores estruturalmente mais predispostos para a queda do emprego: ainda segundo Florida, que cita Michael Mandel, entre Dezembro de 2007 e Novembro de 2008, enquanto, nos USA, o sector «material» (a produção, a construção, a extracção e o transporte) perdeu cerca de 1, 8 milhões de postos de trabalho, o sector «imaterial» (o da «classe criativa»: cientistas, engenheiros, «managers» e especialistas) registou um aumento de cerca de meio milhão de postos de trabalho. Uma outra questão presente nestas reflexões é a questão do consumo e do seu financiamento. Também aqui se verifica um problema estrutural. Em primeiro lugar, o financiamento ao consumo gerou logo uma primeira dificuldade, quando parecia gerar um movimento virtuoso: o endividamento tendia a induzir maior flexibilidade e maior disponibilidade de mão-de-obra. Mas já vimos que, no caso do imobiliário, acabou por gerar rigidez, uma tendência inimiga da economia. Depois, o crédito fácil para um consumo mirífico e sem limites gerou, como diz Geoff Mulgan, uma grave queda na taxa de poupança que pôs em grave risco a capacidade de proteger o próprio futuro, sobretudo quando o sistema financeiro deixava de ter suporte efectivo na economia real, evoluindo para um mundo esquizofrénico onde já nada correspondia a nada. Acresce que o mundo de referência desta dinâmica era o mundo do indivíduo solitário, sem referentes comunitários. Esses mesmos que antes lhe garantiam uma certa sustentabilidade existencial e social. E o mais grave é que estes problemas passaram a ter uma dimensão global, ao mesmo tempo que, como diz Fareed Zakaria, as débeis respostas continuavam a ser ensaiadas sobretudo a nível nacional.


A caminho de um «New Deal» global?


Na verdade, a propósito da crise, há muito que reflectir, sobre o bom e sobre o mau. Claro, tratou-se, como muitos disseram, de uma crise equivalente à da Grande Depressão, mas com novas características. No essencial, a capacidade de reprodução da crise à escala mundial aumentou exponencialmente na era da globalização. Ou seja, disrupções de natureza superestrutural, como foram os sucessivos «crashes» financeiros, projectam-se, a montante, na economia real com uma rapidez jamais vista. A verdade é que a velocidade instantânea e a universalidade da informação geram hoje efeitos sobre a economia real que não eram pensáveis antes. Quando se discutiu a natureza da revolução que haveria de pôr fim ao sistema do socialismo de Estado – a Perestroika -, os conceitos mais radicais usados para diferenciar as economias de mercado (vulgo capitalismo) das economias de plano (vulgo socialismo) eram os de «ditadura do produtor» sobre o consumidor, para as economias de plano, e de «ditadura do consumidor» sobre o produtor, para as economias de mercado. O que se pretendia dizer era que, na URSS, as expectativas do consumidor não determinavam o sistema produtivo, que era planeado para satisfazer o que o poder político-administrativo fixava como essencial, na escala dos chamados bens públicos essenciais. Era como se o consumidor fosse uma variável exógena ao sistema produtivo. Tratava-se de uma espécie de «consumidor passivo», glosando o Kant da «Metafísica dos Costumes». Claro, tratando-se de um sistema fechado, estava vedada ao consumidor, tal como ao cidadão, a livre expressão das suas expectativas, fossem elas políticas ou económicas. É isso que explica a rigidez de tal sistema, a escassez de bens e a sua incapacidade em inovar. Nas economias de mercado, o consumidor ocupa o lugar central, funcionando o sistema produtivo de modo a responder às suas expectativas, satisfazendo-as. Trata-se, aqui, de um «consumidor activo», capaz de dar livre curso às suas expectativas, agindo em consonância com um sistema em livre e plena expansão, capaz de dar resposta à mais complexa e variegada procura. O centro do sistema está, pois, no consumo. E todos nós vemos como convergem para ele tantos recursos que visam estimulá-lo, não só através da inovação permanente na cadeia de produtos e de processos, mas também nos próprios sistemas de crédito. A melhor maneira de arrefecer uma economia consiste em travar o consumo. A pior, em estimulá-lo. Ora também sabemos que a globalização transforma cada consumidor individual num receptor imediato e permanente de informação, simples e complexa, que determina ou induz comportamentos em cadeia. Ou seja, quando uma informação sobre o consumo ou sobre as condições de possibilidade do consumo chega ao espaço público, ela, se for de natureza sistémica, pode determinar fluxos ou refluxos tais nesta cadeia que provoquem fortes efeitos imediatos na própria cadeia produtiva, a montante do consumo. Porque a informação hoje é universal, sendo o espaço público global. E porque, quando o sistema informativo funciona em uníssono, as consequências sobre o comportamento social do consumidor (de produtos políticos, financeiros ou materiais) são imediatas e drásticas. Ou seja, nunca como agora o sistema informativo esteve tão intimamente ligado à esfera económica. E, por isso, nunca o comportamento daquele sistema foi tão decisivo para o destino da economia como hoje. No bom sentido, mas também no mau. Foi também por isso que a crise rapidamente alastrou. Mas foi também por isso, pelo menos em parte, que ela começou a retroceder rapidamente, apesar de as suas consequências começarem agora a pesar como chumbo sobre os países e os cidadãos. Ou seja, a pesada factura, de que sempre se fala nestas circunstâncias, já começou a ser cobrada. É por isso que muitas coisas terão de mudar. Como dizia Joaquín Estefanía, em «El País»: «não podemos voltar a este funcionamento de casino financeiro sem semáforos». Não podemos? De certo modo, também poderíamos dizer, com Fareed Zakaria, que a crise fundamental com que nos deparamos é a crise da própria globalização: produzimos problemas globais e respondemos com soluções nacionais. Não foi bem o caso, uma vez que houve políticas financeiras concertadas, a nível internacional - por exemplo, na União Europeia - embora algumas tenham acabado por estimular uma tal corrida à divida que agora não se vê como financiá-la. De qualquer modo, o modelo actual vive com muitos problemas de saúde, a força da «economia de casino» é enorme e não se vê como alterar o rumo desta economia, sendo a regulação, por melhor que ela seja, insuficiente para resolver os seus desvios. Talvez por isso o título do artigo de Estefanía, «Hacia un “New Deal” global», sendo um bom auspício, não responda cabalmente à questão de fundo.


O paradoxo do capitalismo


«O manifesto capitalista: ganância é bom», de Fareed Zakaria, tem, por isso, um real interesse para esta reflexão, uma vez que ele passa em revista os vários aspectos da crise, como a distinção entre capitalismo e sistema financeiro, pondo em evidência a incapacidade de os decisores políticos, económicos e financeiros imporem, em tempo útil, restrições ao crédito e à voracidade do consumo, optando por baixar sistematicamente taxas e estimular o uso do crédito para o consumo. A frase de Zakaria soa bem, em inglês: «this is the disease (problema, doença) of modern democracy: the system cannot impose any short-term pain (sofrimento) for long-term gain».
Muitos profetizam o fim do capitalismo, dizem que é necessário começar tudo de novo, que o capitalismo deve ser diferente ou que também o capitalismo (tal como o socialismo de Estado) faliu por culpa própria. E não são só os esquerdistas que vêem – como outrora - na crise a grande prova das suas razões, esquecendo o fracasso irreparável dos seus modelos. Críticos são também especialistas moderados e altos responsáveis económicos e políticos. Zakaria não vai, todavia, por aí e procura explicar os problemas como crise de crescimento, como «resultados do sucesso». Diz ele que os bons tempos levam sempre à auto-satisfação, fazendo recordar o belíssimo livro de John Kenneth Galbraith, «The culture of contentment» (1992; veja-se a este propósito Santos, J. A., 1998, Paradoxos da democracia, Lisboa, Fenda, pp. 171-174), essa cultura que não vê para além do bem-estar ou do lucro imediatos, ou mesmo «O príncipe» (1513), de Niccolò Machiavelli, quando diz que «mai ne’ tempi pacifici stare ozioso» ou que é na paz que nos devemos preparar para a guerra.
A explicação de Zakaria materializa-se analiticamente nos seguintes factores:


1. a crise surge após um longo período de estabilidade política, em que a economia global cresceu exponencialmente, duplicando entre 1999 e 2008 e tendo, em 2006 e 2007, 124 países crescido ao ritmo de 4% ao ano, ou mais;
2. a inflação baixou para níveis jamais vistos, tendo poupado a classe média;
3. as recessões passaram a ser controladas muito mais rapidamente do que outrora;
4. milhões de pessoas foram retiradas da pobreza;
5. aconteceu a revolução da informação e da Internet;
6. deu-se a emergência de novas potências económicas, dentre as quais a China, gerando grandes interdependências financeiras com fortes consequências no crédito ao consumo (designadamente nos Estados Unidos).


O mundo acelerou, portanto. Ou, usando uma sua imagem, a economia mundial comportou-se como se fosse uma corrida de carros muito mais rápidos e complexos do que os que existiam e que ninguém guiara até então. Na verdade, ninguém sabia como guiá-los. Pelo que se despistaram. O mais grave, depois, é que, afinal, ainda continuamos a conduzir estes carros. Por outro lado, a exigência moral de outrora relativizou-se, juntamente com a relativização geral dos valores profissionais, culturais, de costumes. Mas também os subsistemas sociais e em particular o subsistema económico-financeiro, passaram a ficar mais expostos, estando mais sujeitos a externalidades do que outrora. O que os fragilizou, sobretudo quando não foram capazes de preparar os seus mecanismos internos para os embates externos. Já referi o papel do sistema global de informação e a sua capacidade de interferir quase instantaneamente no sistema económico-financeiro, por via dos choques informativos directos sobre os consumidores. Mas também se tornou evidente a incapacidade dos reguladores perante as gigantescas fraudes financeiras. Ou a promiscuidade entre muitos decisores políticos e poderosos grupos económicos.
É claro, como diz Zakaria, que é também necessário um sobressalto ético de cada cidadão, a começar pelos grandes decisores. Mas nem por isso deixa de ser optimista em relação ao futuro do capitalismo: «daqui por alguns anos, por estranho que isso possa parecer, nós podemos todos achar que estamos ávidos de mais capitalismo, não de menos», uma vez que ele é o mais produtivo mecanismo económico que nós inventámos, até ao momento. Tal como a democracia, ele é o pior de todos os sistemas económicos, à excepção de todos os outros. E a verdade é que nós não estamos a viver uma crise do capitalismo, mas sim uma crise do sistema financeiro, da democracia, da globalização e, por fim, da ética.


O mundo em profunda mutação


O ano de 2008 foi, de facto, um bom exemplo da velocidade com que a história se está a processar: crise grave no sistema financeiro internacional, onde se descobre que circula dinheiro inexistente e que a avidez de uns tantos gestores financeiros é suficiente para provocar uma ruptura estrutural no sistema; Barack Hussein Obama chega a Presidente dos EUA e inaugura, com uma dinâmica eleitoral tão vasta quanto inovadora, aquilo a que alguns chamaram «política pós-racial»; o petróleo sobe e desce – mas, agora, sobretudo, sobe - a um ritmo estonteante, provocando, na queda, cortes abruptos e gigantescos na produção e, na subida, uma forte instabilidade social, especialmente pelo seu impacto no preço dos combustíveis; a economia mundial transforma-se cada vez mais num jogo de casino em vez de se desenvolver como um consistente processo estrutural; a ilusão neoliberal sofre um rude golpe e o Estado regressa em força, como o único modo de evitar uma desastrosa corrida aos bancos e o colapso dos sistemas financeiros e das economias de todo o mundo, vista a sua dimensão cada vez mais global. Emergiu a crise das chamadas (impropriamente, a meu ver) dívidas soberanas, mesmo em países onde afinal a dívida pública já era superior a 100% do PIB há mais de duas décadas, como é o caso de Itália. As famosas agências de rating, que ninguém controla, à excepção dos seus accionistas privados, ditam lei na economia e finanças e provocam choques brutais nos mercados de capitais e nas finanças de países e empresas. Por isso, vale a pena transcrever o que sobre este assunto diz o Prof. Jesús Timoteo (da Universidade Complutense de Madrid):


«O pecado original de estabelecer a avaliação da credibilidade e da confiança (a reputação) nas agências privadas de “rating” (Moody´s, Standard&Poor´s, Fitch) e de reconhecer como livros sagrados alguns meios globais e anglo-saxónicos especializados em informação económica (The Economist, WSJ, Financial Times). As agências que, com autorização do Governo dos EUA, avaliam periodicamente, numa escala por elas estabelecida, os governos, as instituições ou as empresas em todo o mundo não são minimamente inocentes. Vivem em permanentes conflitos de interesses e dedicam-se, de preferência, a exercer pressão, a seu favor, junto das autoridades de Washington, que as podem favorecer ou prejudicar. Isso está provado em vários relatórios de um instituto independente chamado “Sunlight Foundation”. Warren Buffet, o lendário especulador, é o primeiro accionista da Moody´s, com 12,47%; o segundo accionista das Moody´s é um fundo, o “Capital World Investors”, primeiro accionista da McGraw-Hill e, curiosamente, primeiro accionista da Standard&Poor's. Empresas com interesses cruzados e objectivos económicos próprios gozam do privilégio de avaliar Estados, corporações e finanças e operam como devedores ou prestamistas no mercado financeiro global» (in «Credibilidade e Confiança na Crise do Capitalismo Reputacional», Conferência na Escola Superior de Comunicação Social, 6 de Dezembro de 2011).


E assim é. Num recente artigo, no «Público» (04.05.2012, p. 53), o Prof. Domingos Ferreira (da FCSH da UNL e Universidade do Texas) chamou a este complexo jogo de interesses «império do mal», explicando porquê: «vale a pena lembrar uma vez mais que o «Goldman and Sachs», o «Citygroup», o «Wells Fargo», etc., apostaram biliões de dólares na implosão da moeda única». Como? Referindo o que todos já sabem: com a cumplicidade das agências de rating, declara-se um Estado insolvente, as yields sobem, seguindo-se a necessidade de contrair novos empréstimos, cada vez com juros mais altos (agiotas). Até ao «resgate». A seguir, são impostas medidas drásticas, acabando por obrigar os Estados a abrir os seus sectores estratégicos às grandes corporações internacionais que, movimentando-se em ambientes economicamente recessivos, acabam por ditar as soluções e por condicionar decisivamente as economias nacionais. Protagonista decisivo e recorrente neste processo é a famosa «Goldman and Sachs», useira e vezeira, desde há décadas, em malfeitorias financeiras, mas perigosa agência gestora de poderosas influências no panorama político e financeiro internacional, do Banco Mundial ao FMI ou à FED, vendo homens que foram seus quadros ocupar posições estratégicas em governos europeus (Mario Monti, em Itália, e Lucas Papademos, na Grécia), no BCE (Mario Draghi), junto da própria Comissão Europeia, do governo alemão de Angela Merkel ou mesmo do governo português de Passos Coelho (António Borges, consultor para as privatizações e ex-vice Presidente da «Goldman Sachs International», tendo sido também alto responsável do FMI).  
Mas, apesar de tudo isto ser conhecido, nem por isso os vários poderes políticos, nacionais ou supranacionais, conseguem impedir ou neutralizar esta deriva financeira completamente arbitrária e unilateral, que está a confiscar as soberanias nacionais a um ponto tal que a soberania popular se transformou numa verdadeira ficção política sem conteúdo real. Bem pelo contrário. Pelo que se vê, a influência do poder financeiro internacional cresce exponencialmente, ao ponto de já ocupar o topo de importantíssimos centros de decisão política e financeira europeus e nacionais, como vimos.

Ora, tudo isto justifica uma reflexão profunda sobre a nova configuaração das sociedades ocidentais. Uma reflexão bem mais exigente do que as habituais prédicas morais dos «clercs» do costume, desses que ocupam sistematicamente os interfaces da comunicação para pregarem as eternas banalidades do politicamente correcto. Uma reflexão sobre todas as variáveis de um sistema institucional que desde há mais de duzentos anos se vem afirmando, consolidando e expandindo nas sociedades ocidentais. Com efeito, os pilares estruturais do sistema - como a «representação política» ou a «classe média», por exemplo - têm sofrido mutações tão profundas que estão a gerar uma autêntica mutação genética nas estruturas organizativas das nossas sociedades. O poder judicial dá mostras de grande fragilidade, pela incapacidade de responder a uma progressiva jurisdicionalização da vida social, incluída a própria vida política, e pela sua tendência a fechar-se no seu casulo corporativo quando não a estabelecer promíscuos pactos de interesse com o sistema mediático (veja-se Minc, A., Em nome da lei, Mem Martins, Inquérito, 2000; e L’ivresse démocratique, Paris, Gallimard, 1995). O pilar territorial dos Estados nacionais vem-se diluindo cada vez mais, vista a progressiva globalização dos processos e das relações. Agora é também o pilar financeiro que ameaça ruir.
Para grandes males, grandes remédios, dir-se-ia. Mas bem sabemos no que sempre deu a engenharia social e o voluntarismo, de esquerda ou de direita. A esquerda radical sobe agora de tom, até ao dedo em riste, na sua recorrente prédica moral contra o capital – responsável pela «queda das almas» - e em defesa dos pobres e oprimidos, de quem será o «reino dos céus». Para o pensamento utópico, os processos reais são meros detalhes na caminhada triunfal para a Terra Prometida. Não pode, por isso, compreender o que se está a passar, há muito tempo, em todas estas esferas e não está, assim, em condições de pensar soluções inovadoras para estes processos. É o que acontece quando o snobismo intelectual se converte em «tabloidismo político», transbordante de negativismo moral, mas ávido de consensos eleitorais para o poder. Os neoliberais estão em crise de identidade, uma vez que viram ruir a confiança pública na gestão financeira privada, sendo agora claro que não é possível fazer regredir o Estado para o nível mínimo das chamadas funções de soberania. A verdade é que todo o sistema está, há muito, em mutação profunda. Por isso, é preciso pensá-lo desde a raiz. E não só no plano económico-financeiro, que está a dominar integralmente a agenda política, já que as sociedades não funcionam exclusivamente com a racionalidade económica. Por exemplo, se a confiança é uma variável decisiva para garantir a estabilidade do sistema, então é necessário também manter estável a opinião pública, evitando permanentes choques informativos que acabam por influenciar fortemente, através de grandes oscilações no consumo, o processo económico a montante. Por outro lado, a classe média de hoje já não corresponde à velha classe média, com profissão e propriedade estáveis, sedentária, respeitável e bem inserida ideologicamente no sistema. Hoje, a classe média é profissionalmente instável, é existencialmente nómada, define-se mais pelo estilo de vida do que pela propriedade, é culturalmente fragmentária. É verdade também que a sociedade moderna conheceu uma crescente complexificação normativa, acompanhada por um crescimento exponencial da procura de bens jurídicos. O que é compreensível quer pela expansão dos padrões urbanos de vida quer pelo aumento dos níveis de literacia social e jurídica dos cidadãos. Por sua vez, a velha «representação política» - que nasceu com a expansão das sociedades ocidentais, com o nascimento do Estado e do Direito modernos, com a divisão técnica e social do trabalho, com a afirmação do individualismo e com a configuração abstracta das relações sociais, designadamente das relações económicas e comerciais - diluiu-se, enquanto representação convencional, e deu lugar a um género muito mais amplo, capaz de fazer a simbiose perfeita entre a representação política, a representação jurídica, a representação cénica e a representação mediática. O que, como é natural, determinou profundas mutações no próprio conceito e funcionamento da democracia representativa. A globalização dos processos e das relações de algum modo acabou com a ideia de «fronteira territorial», aumentando as migrações humanas e de processos materiais e, sobretudo, imateriais. A NET é bem a sua expressão privilegiada. A deslocalização de empresas e de serviços também. Finalmente, o pilar financeiro das sociedades ocidentais, que se fundava numa espécie de confiança institucional e que canalizava com aparente segurança a riqueza mobiliária das sociedades e dos concretos indivíduos, entrou numa perigosíssima espiral que pode levar à catástrofe dos sistemas ocidentais, obrigando-nos a regressar a tempos imemoriais, numa versão a sério daquele «back to the basics» de recente memória. É por isso que não se compreende aqueles que criticam a defesa da estabilidade financeira pelos Estados, que - sem prejuízo de tomarem medidas drásticas em relação aos prevaricadores, gente que poderia ter destruído, com as suas vigarices, um sistema social que levou mais de duzentos anos a criar e a consolidar - têm a obrigação de manter intacto o essencial de um sistema que tem provado ao longo da história. Mas também é verdade que não é possível confinar a intervenção das forças responsáveis tão-só à estabilidade do sistema económico-financeiro, designadamente corrigindo drasticamente os graves desvios que se têm vindo a verificar regularmente e com maior ou menor intensidade, sem cuidar de intervir drasticamente também nos outros sectores que já estão em profunda mutação. E é claro que esta intervenção integrada só pode acontecer como resultado de um claro diagnóstico do estado da sociedade moderna, feito pelas forças políticas mais responsáveis, sobretudo aquelas que estão mais em sintonia com os tempos, com o futuro. E essas forças continuam a ser os partidos políticos de inspiração reformista.
O diagnóstico ainda não está completo. Mas sobretudo ainda não está completamente assumido pelos agentes políticos da mudança possível. Mas mais uma vez não serão os predicadores de voz grave e austera que poderão produzir a mudança, porque ela não se faz com sermões nem com ladaínhas, mas com actos, não se faz com voluntarismo, mas com decisão e compromisso, não se faz com utopias, mas com uma analítica consistente do estado do nosso tempo e com valores de inspiração humanista e universalista. É por isso que só as forças reformistas implantadas no terreno, com ideias consistentes e com valores de projecto o podem fazer. Se o não fizerem, então talvez os predicadores façam tantos estragos que, mais do que progresso, acabaremos por ter regresso. Para onde, ninguém sabe. Mas a História ensina».