A
Saga do Tribunal Constitucional,
a
«Política Deliberativa» e a «Dúvida Metódica»
João
de Almeida Santos
«Wag
the Dog»
Chegou
ao fim a primeira
série
da «Saga do Tribunal Constitucional», um filme que compete, em
riqueza de argumento (e de argumentos), com o célebre «Wag the
Dog». Só que aqui não se sabe bem quem desempenha o papel de
Robert de Niro (o «Spin Doctor»), sabendo-se, pelo menos, que o de
Dustin Hoffman foi desempenhado, com muita eficácia, pelo «Público»,
juntamente com alguns produtores e actores secundários, como o «I»,
por exemplo.
O
Tribunal Constitucional (TC) é uma instituição que tem como função
essencial (as outras funções constam do art. 223, n.º 2) garantir
a constitucionalidade das normas produzidas pelo legislador, ou seja,
garantir que não haja contradição entre o processo legislativo
normal e as normas fundamentais que integram a Constituição da
República. Para tal, é integrado por juízes de outros tribunais e
por juristas, em número de treze. Dez são designados pela
Assembleia da República (na prática: pela maioria e pelo principal
grupo parlamentar da oposição). O TC situa-se, assim, numa esfera
contígua à vontade política originária, que se exprime no
contrato
social originário,
plasmado na Constituição, e a esfera da concreta produção
legislativa. Talvez seja por isso que a AR – poder legislativo -
tem, na sua constituição, uma tão vasta competência, mesmo
tratando-se de um Tribunal e reconhecendo a separação dos poderes.
Quem conhece Kelsen, e um pouco de neopositivismo, em que ele se
inspira, sabe bem do que falo.
O
protagonista
O
protagonista principal desta «Saga» chama-se José Manuel Vieira
Conde Rodrigues, Juiz
de Direito,
em situação de licença de sem vencimento. Enredo: tendo sido
indicado pelo maior grupo parlamentar da oposição, e não agradando
(vá-se lá saber porquê!) à maioria, é lançada nos media uma
imensa campanha
negativa
contra o candidato. Esta campanha
negativa
acabaria por afunilar (vá-se lá também saber porquê) num
argumento de natureza técnica: quem está de licença sem vencimento
perde a sua qualidade de Juiz
de Direito,
o estatuto ao abrigo do qual fora proposto. Esta «convicção»
circulou amplamente no «espaço público deliberativo» (vulgo
espaço mediático) até que chegou à Presidência da Assembleia da
República (PAR). Aqui, após uma primeira e tímida manifestação
de acolhimento institucional da «convicção» circulante, ainda que
sob a forma de dúvida, ela viria a converter-se em decisão
administrativamente vinculativa, através de um despacho da PAR,
Assunção Esteves, reconhecida jurista e ex-membro do TC. Ou seja,
para quem estuda estas coisas, Portugal deu, assim, mais uma prova do
seu pioneirismo em matéria dessa «democracia deliberativa» de que
fala Habermas, por quem, creio, a Presidente parece nutrir simpatia
intelectual (já agora, o livro chama-se «Faktizität und Geltung»
e é de 1992, da Suhrkamp). Ou seja: a opinião circulante no espaço
«Público» converte-se rapidamente em decisão administrativa, logo
na primeira instância de decisão (o Gabinete da PAR), sem sequer
chegar à fase de apreciação parlamentar. Isto, graças à
capacidade decisional da Senhora Presidente, ao seu respeito pela
«democracia deliberativa» e, sem dúvida, ao seu poder de veto
administrativo, na fase processual das decisões políticas do
Parlamento. Poder-se-ia mesmo dizer, neste caso, que estamos em pleno
cartesianismo: «dubito, ergo sum» - «duvido, logo existo»
(politicamente falando, claro). Ou seja, em pleno desenvolvimento do
poder
performativo da «dúvida», que
se converte em acção só pelo facto de ser pronunciada. Deste ponto
de vista, o que interessa mesmo é, pois, a
dúvida.
Não o seu esclarecimento.
Juiz
de Direito
Vejamos.
A Constituição da República exige tão-só a qualidade de Juiz
(art.
222), sem mais, ainda que ela acolha a existência de duas qualidades
(uma mais genérica, a outra mais específica) para a mesma
substância: Juiz
e
Juiz
em exercício.
Também a lei que regula o TC diz o mesmo: Juiz,
sem mais qualificativos. Ora o Conselho
dos Tribunais Administrativos e Fiscais
atribuiu ao Juiz de Direito
Conde Rodrigues (em certidão de 28.06.2011) 8
anos, 0 meses e 2 dias
como Juiz
de Direito (nomeado
«definitivamente»),
apesar de durante cerca de seis anos não ter estado em exercício,
em virtude de ter desempenhado as irrelevantes funções de
Secretário de Estado Adjunto e da Justiça (4 escassos anos) e de
Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna (quase
dois breves anos). De resto, o Juiz
Conde Rodrigues (de nomeação definitiva), no dia seguinte ao fim
das suas irrelevantes funções governativas (21.06.2011) teve de se
apresentar de imediato, e sem mais, no seu local de trabalho, que é
sempre o mesmo tribunal (TACL),
sob pena de ficar em situação irregular, tendo, depois, apresentado
um requerimento formal ao respectivo Conselho (que defere ou
indefere) para poder entrar em licença sem vencimento. O que fez,
tendo sido deferido o pedido. De resto, passado um ano, se quiser, o
Juiz
Conde
Rodrigues poderá passar de imediato a Juiz
em exercício efectivo de funções,
no lugar que lhe pertence, no Tribunal
Administrativo do Círculo de Lisboa.
Há dúvidas? Há. Afinal ele não pode ter um documento que o
identifique como Juiz durante a licença sem vencimento. Claro, para
o senso comum isto quer dizer que não estando em exercício não se
pode apresentar como tal, com todas as prerrogativas que isso
comporta. Simples, não é? De resto, quando era Secretário
de Estado da Justiça
também não podia apresentar-se como Juiz (era o que faltava!), mas
não foi por isso que o Conselho
dos Tribunais Administrativos e Fiscais
deixou de lhe reconhecer, também durante estes anos, a sua qualidade
de Juiz. Há dúvidas? Se há, não sei mesmo a quem recorrer para as
tirar, uma vez que o que diz um Conselho
dos Tribunais
acerca de um seu agente de nomeação definitiva já não vale nada!
É, alíás, por isso mesmo que eu próprio aqui estou, com este
artigo, a entrar no espaço público, não mediático, mas
«reticular», dizendo o que entendo ser a verdade, neste caso. Por
simples dever de cidadania.
O
Despacho Presidencial
Se
dúvidas teve a Senhora Presidente, e teve, muito seriamente, também
eu as tenho. Mas, neste caso, as dúvidas são sobre o seu Despacho.
Vejamos. Em primeiro lugar, a inversão do princípio «in dubio pro
reo». Claro, diz a Senhora Presidente, não se tratando de um
direito subjectivo, «in dubio, contra reum»!! Claro, digo eu,
acabam de retirar ao candidato, por via administrativa, e de forma
fraudulenta - acrescento, e com forte convicção -, o direito de se
candidatar e de se defender na audição parlamentar (podendo, aí
sim, com toda a legitimidade, ser «chumbado»)!! Depois, diz o
Despacho que «a lista não apresenta, de modo isento de dúvidas,
dois candidatos com a qualidade de “Juízes de outros tribunais”,
o que se requer face à actual composição do TC. Existem dúvidas»,
continua, «sobre se o candidato Dr. José Conde Rodrigues detém a
qualidade “de juiz dos outros Tribunais” para efeitos do sentido
da norma 222, n. 2, da Constituição e do art. 12, n. 2, da Lei do
TC [que diz exactamente o mesmo que a Constituição, digo eu]. Quer
dizer: - sobre se o candidato deve ser recrutado do exercício actual
e efectivo da judicatura, com isso também configurando a
“representatividade” efectiva no TC de outros Tribunais, que é a
minha interpretação, - ou se é suficiente que o candidato
formalmente radique a sua carreira nos Tribunais, ainda que em
situação de licença sem vencimento». A sua interpretação foi,
como se está a ver, nos termos do despacho, a «mais exigente». Tão
exigente que até ultrapassa a própria letra da Constituição. E,
assim, para alívio de muitos e em homenagem ao «spinning» de
triste memória, mandou arquivar o processo.
Radicar
a carreira nos tribunais?!
Ou
seja, há dúvidas sobre se o Juiz Conde Rodrigues é Juiz
do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa,
apesar de ser Juiz de nomeação definitiva (nunca revogada), de o
Conselho
dos Tribunais Administrativos e Fiscais
o considerar (à data da Certidão) Juiz
há 8 anos, 0 meses e 2 dias
e de o seu próprio Tribunal
(TACL)
o considerar e tratar como tal. Depois, a Senhora Presidente diz que
as dúvidas se referem à questão de saber «se o candidato deve ser
recrutado do exercício actual e efectivo da judicatura». O que é
isto, pergunto, do «exercício actual e efectivo da judicatura»?
Tem de ser: Juiz
em exercício.
O que, todavia, não é exigido pela Constituição, nem pela Lei do
TC, sendo certo que, para a Constituição, este conceito de «juiz
em exercício» existe (art.º
216, n.ºs 2 e 3 da
CRP), não sendo, todavia, neste caso, invocado («juízes de outros
tribunais»). O
que quer dizer que a interpretação mais exigente terá de ser a que
estiver mais de acordo com a letra da Constituição do que com a
psicologia do intérprete de ocasião.
E, finalmente, acrescenta a Senhora Presidente: «com isso também
configurando a “representatividade” efectiva no TC de outros
tribunais, que é a minha [dela] interpretação». Ora, com esta
interpretação e consequente decisão, o que a Senhora PAR está a
fazer é a negar ao Juiz
de Direito
Conde Rodrigues a sua qualidade
de Juiz
e a sua efectiva
pertença
ao Tribunal
Administrativo do Círculo de Lisboa, suspendendo-as,
negando-lhe o direito de representar este Tribunal e violando,
assim, gravemente o n.º1. do art. 216 da Constituição
(o tal artigo que diz que os Juízes
– tout court - não podem ser suspensos ou demitidos e que
distingue entre Juízes e Juízes
em exercício).
Por outro lado, o que significa dizer «ou se é suficiente que o
candidato formalmente radique a sua carreira nos Tribunais»?
Radique? Carreira? Qual? A de Juiz? O que é isso de radicar a
carreira nos tribunais? Isto tanto vale para o empregado de limpeza,
como para o porteiro, o telefonista, o dactilógrafo, o funcionário
judicial ou o juiz. Isto, aliás, nem sequer é linguagem apropriada.
Poderia, no entanto, a Senhora Presidente, ao abrigo e no respeito
pela separação dos poderes, deixar ao poder judicial (que é o
directo interessado, na sua própria interpretação) que dirimisse a
questão. O que não fez. Porquê? Vá-se lá saber!
Um
final infeliz
Temos,
pois, aqui, um bonito processo: intelectualmente muito elevado,
politicamente muito correcto, mediaticamente tratado segundo as
melhores práticas e os melhores «códigos éticos». Alguém que é
Juiz de pleno direito, que não milita politicamente em nenhum
partido há cerca de 10 anos, que ganhou, com menos de 30 anos e com
duas maiorias absolutas, a Presidência da Câmara do Cartaxo, que
foi um alto dirigente de uma importante empresa multinacional suíça,
que desempenhou, ao tempo em que era militante do PS, relevantes
funções internacionais na Internacional Socialista (a maior
organização política mundial), que foi três vezes Secretário de
Estado durante cerca de sete anos, que foi e é professor em vários
estabelecimentos de ensino superior, que é vogal do Conselho Superior do Ministério Público, eleito pela AR, com votação superior a 2/3 e sem votos contra, que tem seis obras publicadas
(sobre direito e sobre política), alguém que com estas
características é impedido administrativamente de defender aquele
que, por ser Juiz, é um seu direito (e sendo certo que para o cargo
foi proposto pelo GP/PS), perante a Assembleia da República, esse
alguém está a ser literalmente atropelado por um conjunto
indiferenciado de protagonistas que não estão a ver bem o filme da
democracia, onde os procedimentos não podem estar a ser
constantemente telecomandados por permanentes golpaças mediáticas
ou por meras idiossincrasias pessoais. Este episódio – na sua
relativa pouca relevância - é mais um excelente exemplo de como a
política continua a ser colonizada pelos media e por todos os
manipuladores encartados, estejam eles nos interfaces mediáticos ou
nos corredores de interesses que deles se servem para atingirem os
seus fins. A pergunta de um milhão de euros é a seguinte: por que
razão travaram
mediática e administrativamente
o Juiz
de Direito
Conde Rodrigues, não deixando que chegasse à audição parlamentar
para ser ouvido na qualidade de candidato ao Tribunal Constitucional
proposto pelo GP/PS, que sempre o considerou apto, de todos os pontos
de vista, para o cargo?
A dúvida mantém-se: Porque razão travaram o Juiz de Direito Conde Rodrigues???? A subversão das regras pela PAR é aplaudida pelos incautos. Os engenhosos seguem o seu caminho, as raposas enroscam-se na calentura das suas tocas, os palhaços riem-se de si próprios e nada sabendo o que fazer protegem-se uns aos outros. E é isto um Estado de Direito? Onde os Homens são livres e aguardam passivamente o desenrolar dos alegados procedimentos instados pela lei, concluindo depois que quais vislumbráveis procedimentos, esses não existem, dane-se a lei, e viva a Assunção e os seus cangaceiros!
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